O ROUXINOL E A ROSA
- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse rosas vermelhas - lastimou-se o jovem Estudante -, porém em todo o meu jardim não existe uma única rosa vermelha.
De seu ninho no grande carvalho o Rouxinol ouviu-o, olhou por entre as folhagens e ficou pensando.
- Nem uma única rosa vermelha em todo meu jardim! - chorou o Estudante, e seus lindos olhos ficaram marejados de lágrimas. - Ai, como a felicidade depende de pequenas coisas! Já li tudo que escreveram os homens mas sábios, conheço todos os segredos da filosofia, mas por falta de uma rosa vermelha minha vida esta desgraçada.
- Finalmente encontro um verdadeiro amante - disse o Rouxinol. - Tenho cantado esse ser noite após noite, mesmo sem conhecê-lo: noite após noite contei sua história às estrelas, e só agora o encontrei. Seus cabelos são escuros como a flor de jacinto, e seus lábios rubros como a rosa de seus desejos, porém a paixão tornou seu rosto pálido como marfim e a tristeza selou sua testa.
- O Príncipe dá um baile amanhã à noite - murmurou o jovem Estudante -, e o meu amor estará entre os presentes. Se eu lhe levar uma rosa vermelha ela dançará comigo até de madrugada. Se eu lhe der uma rosa vermelha eu a terei em meus braços, e ela deitará sua cabeça sobre o meu ombro, com sua mão presa na minha. Mas não há uma única rosa vermelha em meu jardim, de modo que ficarei abandonado em meu lugar e ela há de passar por mim. Ela nem irá me notar, e meu coração ficará partido.
- Aí está, de fato, um verdadeiro amante - disse o Rouxinol. - Ele sofre tudo o que eu canto: o que é alegria em mim, para ele é dor. Sem dúvida o amor é uma coisa maravilhosa. Ele é mais precioso do que a esmeralda e mais refinado que a opala. Nem pérolas e nem granadas podem comprar, e nem é ele exposto nos mercados. Ninguém pode comprá-lo de mercadores, nem pode ser pesadonas balanças feitas para pesar ouro.
- os músicos vão ficar em sua galeria - disse o jovem Estudante. - Tocarão seus instrumentos de cordas, e o meu amor dançará ao som da harpa e do violino. Ela irá dançar com tal leveza que seus pés nem tocarão o chão, e os cortesãos, com suas roupas alegres, ficarão amontoados em volta dela. Porém comigo ela não irá dançar, porque não lhe dei um rosa vermelha - e atirou-se na relva, enterrou o rosto entre as mãos, e chorou.
- Por que é que ele esta chorando? - perguntou o Lagartinho Verde, ao passar por ele com o rabinho empinado par ao ar.
- Por que será? - disse a Borboleta, que estava esvoaçando atrás de um raio de sol.
- É mesmo, por que será? - sussurrou uma Margarida a seu vizinho, com uma voz suave e baixinha.
- Está chorando por uma rosa vermelha - disse o Rouxinol.
Mas o Rouxinol compreendeu o segredo da tristeza do Estudante, e ficou em silêncio debaixo do carvalho, pensando sobre o mistério do Amor.
Repentinamente ele abriu as asas para voar e subiu para os ares, passando pelo bosque como uma sombra e, como uma sombra, deslizar através do jardim.
Bem no centro do gramado havia uma linda Roseira e, ao vê-la, o Rouxinol voou para ela e pousou em um ramo.
- Dê-me uma rosa vermelha - exclamou ele - que eu lhe cantarei minha mais doce canção.
Mas a roseira não estava interessada.
- Minhas rosas são brancas - respondeu. - Brancas como a espuma do mar, e mais brancas do que a neve das montanhas. Mas vá até minha irmã que cresce junto ao relógio de sol, que talvez ela lhe dê o que quer.
E então o Rouxinol voou para a Roseira que crescia ao lado do velho relógio de sol.
- Se você me der uma rosa vermelha - gritou ele -, eu canto para você minha mais doce canção.
Mas a Roseira sacudiu a cabeça.
- Minhas rosas são amarelas - respondeu ela -, tão amarelas quanto os cabelos da sereia em um trono de âmbar, e mais amarelas do que os junquilhos que florescem no campo do ceifador aparecer com sua foice. Mas pode ir até a minha irmã que cresce debaixo da janela do Estudante, que talvez ela lhe dê o que está procurando.
E então o Rouxinol voou até a Roseira que crescia debaixo da janela do Estudante.
Se você me der uma rosa vermelha - gritou ele -, eu canto para você minha mais doce canção.
Mas a Roseira sacudiu a cabeça.
Minhas rosas são vermelhas - respondeu ela -, vermelhas como os pés da bomba e mais vermelhas do que os grandes leques de coral que abanam sem parar nas cavernas do oceano. Mas o inverno congelou minhas veias, a geada cortou meus botões, a tempestade quebrou meus galhos, e não terei uma só rosa este ano.
- Eu só quero uma rosa - gritou o Rouxinol. - Apenas um rosa vermelha! Não haverá nenhum jeito de consegui-la?
- Só há um - respondeu a Roseira -, mas é tão terrível que não ouso contar.
- Pode contar - disse o Rouxinol -, eu não tenho medo.
Se quiser uma rosa vermelha - disse a Roseira -. você terá de construí-la de música ao luar, tingindo-a com o sangue do seu próprio coração. Terá de cantar para mim com seu peito de encontro a um espinho. Terá de cantar para mim a noite inteira, e o espinho terá de furar o seu coração, e o sangue que o mantém vivo terá de correr para minhas veias, transformando-se em meu sangue.
- A morte é um preço alto para se pagar por uma rosa vermelha - exclamou o Rouxinol -, e a Vida é muito cara a todos. É tão agradável ficar parado no bosque verde, olhar o Sol em seu carro de ouro, e Lua em seu carro de pérolas. Doce é o perfume do pilriteiro, doces são as campânulas que se escondem no vale, e as urzes que balançam nas colinas. No entanto, o Amor é melhor do que a Vida, e o que é o coração de um passarinho comparado como o coração de um homem?
Com isso, ele abriu as asas e lançou vôo para os ares. Passou célebre sobre o jardim e como uma sombra deslizou pelo bosque.
O jovem Estudante ainda estava deitado na relva, onde ele o havia deixado, e as lágrimas nem haviam secado de seu lindo rosto.
- Fique contente - canto-lhe o Rouxinol - fique contente. Você terá sua rosa vermelha. Eu a construirei com minha música ao luar, tingindo-a com o sangue do meu próprio coração. E só o que peço em troca é que você seja um amante fiel e verdadeiro, pois o Amor é mais sábio do que a Filosofia, embora ela seja sábia, e mais poderoso do que o Poder, embora este seja poderoso. Cor das chamas são suas asas, e cor das chamas é o seu corpo. Seus lábios são doces como o mel, seu hálito como o incenso.
O Estudante olhou para o alto e ouviu, mas não compreendeu o que o Rouxinol dizia, porque só conhecia as coisas quem vêm escritas nos livros. Mas o Carvalho compreendeu e ficou triste, porque gostava muito do Rouxinol, cuja família tinha ninho em seus ramos.
- Cante-me uma última canção - sussurrou ele -,vou sentir-me tão só quando você se for.
Então o Rouxinol cantou par ao Carvalho, e sua voz parecia a água quando sai saltitando de um jarro de prata.
Quando a canção acabou, o Estudante se levantou e tirou do bolso um caderninho de notas e um lápis.
- Ele tem forma - disse para si mesmo, enquanto caminhava pelo bosque -, isso ninguém pode negar. Mas será que tem sentimentos? Temo que não. Na verdade, deve ser como a maioria dos artistas: é todo estilo, sem qualquer sinceridade. Ela jamais se sacrificaria pelos outros. Só pensa em música, e todo mundo sabe que as artes são egoístas. Mesmo assim, é preciso admitir que a sua voz tem algumas notas lindas. Que pena não significarem, nem qualquer utilidade.
E foi para o seu quarto, onde se deitou em seu pequeno catre e, depois de pensar por algum tempo em sua amada, adormeceu.
Quando a lua começou a brilhar no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e encostou o peito no espinho. Durante toda a noite ele cantou, como o peito no espinho, enquanto a fria Lua de cristal curvara-se para ouvir. Ele cantou a noite inteira e o espinho entrava cada vez mais fundo sem eu peito, enquanto seu sangue escorria para fora.
Primeiro ele cantou sobre o nascimento do amor no coração de um rapaz e uma moça. E no ramo mais alto da Roseira foi florescendo uma rosa maravilhosa, pétala por pétala, à medida que uma canção seguia outra. A princípio ela era pálida como a névoa que parira sobre o rio, pálida como os pés da manhã e prateada como as asas da madrugada. Como a sombra de uma rosa em um espelho de prata. Como a sombra de uma rosa em uma lagoa, assim era a rosa que floresceu no ramo mais alto da Roseira.
Mas a Roseira ficava gritando para o Rouxinol se apertar cada vez mais de encontro ao espinho.
- Aperta mais, Rouxinol! - gritava a Roseira -, se não o dia chega antes que a rosa esteja pronta.
E o Rouxinol fazia cada vez mais pressão contra o espinho, e cantava cada vez mais alto, pois estava cantando o nascimento da paixão entre a alma de um homem e uma donzela.
E um delicado enrubescer rosado apareceu nas folhas da rosa, como o enrubescer no rosto do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho ainda não havia atingido o coração, de modo que o coração da rosa permanecia branco, pois só o sangue do coração de um Rouxinol pode deixar rubro o coração de uma rosa.
E a Roseira gritava para o Rouxinol enfiar mais e mais o peito de encontro ao espinho.
- Mais ainda, pequeno Rouxinol - gritava a Roseira -, se não o dia chega antes de a rosa estar pronta.
E o Rouxinol foi se apertando cada vez mais de encontro ao espinho, e o espinho tocou-lhe o coração, e um terrível golpe de dor passou por toda a avezinha. A dor era horrível, horrível, e a canção foi ficando cada vez mais enlouquecida, pois agora ele cantava o Amor que ficava perfeito com a Morte, o Amor que não morre no túmulo.
E a rosa maravilhosa ficou rubra, como a rosa do céu do oriente. Rubro era todo o círculo de pétalas, e rubro como um rubi era seu coração.
Mas a voz do Rouxinol foi ficando mais fraca, suas asinhas começar a se debater, e uma névoa cobriu seus olhos. Cada vez mais fraca foi ficando sua canção, e ele sentiu alguma coisa que sufocava sua garganta.
E então ele soltou uma última porção de música. A Lua branca ouvi-a e se esqueceu da madrugada, ficando no céu. A rosa também ouviu, estremeceu toda em êxtase, e abriu suas pétalas ao ar frio da manhã. O eco levou-a até sua caverna púrpura nas colinas e despertou de seus sonhos os pastores que dormiam. Ela flutuou até os juncos dos rio, e estes levaram a mensagem par ao mar.
- Veja, veja! - gritou a Roseira. - Agora a Rosa está pronta.
Mas o Rouxinol não respondeu, pois tinha caído morto no meio da relva, como o espinho atravessado no peito.
Ao meio-dia o Estudante abriu sua janela e olhou para fora.
- Ora, mas que sorte maravilhosa! - exclamou ele. - Eis ali uma rosa vermelha1 Jamais vi rosa como essa em toda a minha vida. É tão bonita que estou certo de que deve ter algum nome em latim! - e, debruçando-se, colheu-a
Depois ele botou o chapéu e correu para a casa do Professor, com a rosa na mão.
A filha do Professor estava sentada na porta, enrolando um fio de seda azul em um novelo, como o cachorrinho deitado a sues pés.
Você disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse um a rosa vermelha - exclamou o Estudante. - Aqui está a rosa mais vermelha do mundo inteiro. Use-a junto ao seu coração hoje à noite, e enquanto estivermos dançando eu lhe direi o quanto a amo.
Mas a moça franziu o cenho.
- Receio que ela não combine com o meu vestido respondeu. - E, além do mais, o sobrinho do Camerlengo mandou-me uma jóia de verdade, e todos sabem que as jóias custam muito mais do que as flores.
- Você é muito ingrata. - disse o Estudante com raiva, e atirou a rosa na rua, onde ela caiu em uma sarjeta e uma carroça acabou passando por cima.
- Ingrata? - disse a moça. - Pois fique sabendo que você é muito rude e, afinal, quem é você? Apenas um estudante. Ora, não creio sequer que tenha fivelas de prata para seus sapatos, como as que tem o sobrinho do Camerlengo - e, levantando-se de sua cadeira, entrou na casa.
- Que coisa tola é o amor! - disse o Estudante, enquanto se afastava. - Não tem a metade da utilidade da Lógica, pois não prova nada, e fica sempre dizendo a todo mundo coisas que não vão acontecer, fazendo com que acreditemos em coisas que não são verdade. Enfim, não é nada prático e, como hoje em dia ser prático é o importante, vou voltar à Filosofia e estudar Metafísica.
E voltou para seu quarto, onde pegou um enorme livro todo empoeirado e começou a ler.
O MODELO MILIONARIO
O MODELO MILIONÁRIO
Oscar Wilde
De que vale ser um jovem encantador se não tiver bastante dinheiro? O romance é privilégio dos ricos e não profissão de desempregados. O pobre deve ser prático e prosaico. Vale mais uma renda permanente do que o dom de fascinar. Eram essas as verdades da vida moderna que o jovem Hughie Erskine não conseguia compreender. Pobre Hughie! Apesar de não ser de grande valor intelectual, nunca, em toda sua vida, havia feito ou dito alguma coisa de realmente relevante ou verdadeiramente reprovável. Era, contudo, extremamente simpático com seus cabelos castanhos ondulados, seu perfil de nítidos contornos e seus olhos acinzentados. Era tão bem sucedido com os homens como o era com as mulheres, e possuía todas as habilidades, menos a de ganhar dinheiro. Seu pai deixara-lhe por herança, seu sabre de cavalaria e quinze volumes sobre a História da Guerra Peninsular. Hughie pendurou o sabre acima do seu espelho de quarto; encaixotou os livros numa estande entre o Ruff’s Guide e o Bailey Magazine e passou a viver com a renda de 200 libras, abonadas por uma velha tia. Tentou todos os meios de ganhar a vida. Durante 6 meses arriscou a sorte na bolsa; mas que podia fazer um louva-a-deus entre ursos e touros? Passou algum tempo vendendo chá aos atacadistas mas cansou-se logo do "pekoe" e do "souchong". Em seguida tentou negociar "dry sherry", mas desistiu logo pois o "sherry" era seco demais. Finalmente entregou-se à deliciosa arte de não fazer absolutamente nada e tornou-se um jovem encantador e inútil, com um perfil impecável e sem profissão alguma.
Para complicar as coisas, Hughie amava. Sua eleita era Laura Merton, filha de um coronel reformado que deixara na Índia seu bom-humor e seu bom estômago e nunca mais encontrara nem um nem outro. Laura amava loucamente o jovem Hughie e ele, por sua vez, teria sido capaz de beijar com paixão até os cordões dos seus sapatinhos. Laura e Hughie formavam um dos pares mais combinados de Londres e entre ambos não havia sequer um real. O coronel estimava muito o jovem Hughie mas opunha-se a qualquer compromisso de casamento.
* Meu caro jovem - dizia o velho - Volte quando tiver acumulado com seus próprios esforços umas dez mil libras. Então, poderemos conversar. - Quando ouvia essas palavras, o jovem Hughie, acabrunhado, buscava conforto nos braços da sua amada.
Certa manhã, quando se dirigia para Holland Park onde moravam os Mertons, Hughie resolveu visitar um grande amigo seu, chamado Alan Trevor, que era pintor. A arte de pintar tornou-se epidêmica em nossos dias. Mas além de pintor, Trevor era também um grande artista, e os grandes artistas são muito raros. Trevor era uma estranha criatura um tanto rude; tinha o rosto salpicado de sardas e usava uma barbicha ruiva, sempre emaranhada. Contudo, quando empunhava o pincel, tornava-se um autêntico mestre e todos os seus trabalhos eram muito requestados. Desde o princípio fora fortemente atraído pela sedutora personalidade de Hughie. "Os pintores só deviam conhecer criaturas obtusas e encantadoras. Criaturas que ao contemplar, nos proporcionem um real prazer artístico e ao conversar, um verdadeiro repouso intelectual. Os janotas e as coquetes governam o mundo, ou pelo menos deviam "governar", dizia Trevor freqüentemente. Entretanto, depois de conhecer melhor Hughie, apreciou-o tanto pela sua jovialidade e bom caráter quanto pela sua natureza generosa e espontânea, permitindo-lhe livre acesso ao seu estúdio.
Hughie, ao entrar, encontrou Trevor dando os retoques finais num magnífico quadro que representava um mendigo em seu tamanho natural. O mendigo em pessoa posava sobre um estrado num dos ângulos do estúdio. Era um ancião encarquilhado com o rosto enrugado como um pergaminho e cuja fisionomia expressava infinita tristeza. Um velho manto rústico, rasgado e esfarrapado, recobria seus ombros e seus sapatos remendados estavam rotos em diversos lugares. Tinha uma das mãos apoiada num grosseiro bastão e a outra segurava um chapéu velho, estendido à caridade pública.
* Que extraordinário modelo! - exclamou Hughie, apertando a mão do amigo.
* Extraordinário - bradou Trevor - que dúvida! Um modelo como este não é encontrado todos os dias. Um achado, meu amigo, um verdadeiro achado. Um Velasquez em pessoa! Céus! Queágua-forte teria Rembrant com um modelo como esse!
* Pobre velho - disse Hughie - parece tão miserável. Suponho que para vocês, pintores, uma fisionomia dessas vale uma fortuna.
* Meu caro Hughie, respondeu o pintor, como quer que um mendigo irradie felicidade?
Acomodando-se no sofá, Hughie perguntou:
* Quanto ganha um modelo para posar, Trevor?
* Um shilling por hora.
* E quanto ganha você com o quadro?
* Esse ai me dará uns dois mil.
* Libras?
* Não, guinéus. Pintores, poetas e doutores só recebem guinéus.
* Pois olhe, Alan, na minha opinião os modelos deveriam receber uma porcentagem. O trabalho deles é quase tão árduo quanto do artista.
* Tolices, Hughie! Veja só o trabalho que dá aplicar a tinta na tela e ficar o dia todo em pé, na frente do cavalete. Falar é fácil, mas pode estar certo que há momentos em que a arte atinge a dignidade de um trabalho braçal. Mas deixe de tagarelar. Estou trabalhando e preciso de sossego. Sente e fume.
Depois de algum tempo o criado entrou para avisar o pintor que o fabricante de molduras queria falar-lhe.
* Fique aí, Hughie. Voltarei em minutos - disse Trevor.
O velho mendigo aproveitou a ausência do pintor para descansar numa banqueta ao lado do estrado. Sua fisionomia era uma imagem de dor e tristeza e Hughie, comovido, procurou nos bolsos para ver se encontrava alguma moeda. Encontrou apenas uma libra e alguns pences. "Pobre velho", pensou ele, "precisa mais desse dinheiro do que eu e não me custa nada ficar sem condução quinze dias", e atravessando o estúdio depositou timidamente as moedas na mão do velhinho.
O velhinho assustou-se e, depois, um leve sorriso esboçou-se nos seus lábios murchos.
* Muito obrigado, senhor. Muito obrigado.
Trevor chegou e Hughie, enrubescendo um pouco pelo seu gesto, despediu-se e saiu. Passou o resto do dia em companhia de Laura, foi gentilmente censurado pela sua prodigalidade e voltou a pé para casa.
Naquela noite, eram mais ou menos onze horas, Hughie foi para o Pallete Clube e encontrou Trevor sozinho no salão, bebendo vinho branco com água de seltzer.
* Então, Alan, conseguiu terminar o quadro?
* Terminar e emoldurar, meu caro! - respondeu Trevor. - E a propósito sabe que você fez mais uma conquista? O velhinho que serviu de modelo falou muito de você. Fui obrigado a descrevê-lo na íntegra. Ele quis saber quem é você, onde mora, de que vive, quais são seus planos para o futuro...
* Meu caro Alan - exclamou Hughie - Com certeza quando chegou em casa vou encontrá-lo me esperando. Mas, escute, Trevor. Você parece que está brincando. Saiba que tive muita pena do pobre infeliz. queria poder fazer alguma coisa por ele. Deve ser horrível ser tão desgraçado. Tenho muitas roupas velhas lá em casa. Acha que ele as aceitaria? Estava tão esfarrapado!
* Seus farrapos são a sua magnificência - disse Trevor. - Por dinheiro algum pintá-lo-ia envergando um fraque. O que você chama de farrapos eu chamo de romance. O que para você representa miséria, para mim representa pitoresco. Todavia, falar-lhe-ei de sua oferta.
* Vocês pintores não têm coração - disse Hughie num tom de censura.
* O coração do artista é a sua cabeça - respondeu Trevor - Aliás, o objetivo do artista é compreender o mundo como ele o vê e não reformá-lo como o compreendemos. A chacun son métier. Bem, e agora, diga-me como está Laura. O velho modelo está vivamente interessado nela.
* Quer dizer que ela também foi assunto de conversa entre vocês? - exclamou Hughie.
* Sim. Contei-lhe toda a história do implacável coronel, da formosa Laura e das 10 mil libras.
* Você contou todas essas particularidades ao velho mendigo? - bradou Hughie, enrubescendo vivamente e bastante exaltado.
* Meu caro Hughie - disse Trevor sorrindo - Esse pobre homem que você classifica de mendigo é um dos mais ricos da Europa. Se quiser, pode comprar amanhã toda a Inglaterra sem desfalcar seu crédito bancário. Possui propriedades em todas as capitais, faz suas refeições em baixelas de ouro e pode, quando lhe aprouver, impedir a Rússia de entrar em guerra.
* Que baboseiras está contando, Alan?
* Baboseiras? O ancião que você encontrou hoje no meu estúdio é o barão Hausberg. Um dos meus grandes amigos e admiradores e um dos meus melhores clientes. Compra quase todos os meus quadros e outras coisas mais. Há mais ou menos um mês pediu-me para retratá-lo na caracterização de um mendigo. Que voulez-vous? La fantasie millionnaire! Não posso negar que fez bela figura nos seus farrapos - ou melhor, nos meus farrapos. Comprei-os na Espanha.
* O barão de Hausberg! - murmurou Hughie, perplexo. - Santo Deus! E eu lhe dei uma libra - tartamudeou ele, afundando numa cadeira com ar profundamente consternado!
* Você lhe deu uma libra? - perguntou Trevor rindo. - Nunca mais a verá, meu caro amigo. Son affaire c’est l’argent des autres.
* Devia ter-me avisado, Alan - disse Hughie visivelmente aborrecido. - Teria evitado o ridículo papel que fiz.
* Bem, para começar, Hughie - disse Trevor - nunca me passou pela cabeça que você pudesse distribuir esmolas de maneira tão insensata e tola. Compreendo que se beije um modelo bonito, mas quanto a dar uma libra a um modelo feio - poxa, isso não. Além disso, hoje tinha intenção de não receber ninguém e quando você entrou no estúdio não sabia se o barão Hausberg queria que mencionasse o seu nome. Você compreende, com aqueles trajes...
* Deve julgar-me um idiota.
* Ao contrário. Quando você saiu ficou muito jovial e murmurava baixinho esfregando as mãos enrugadas. Fiquei um pouco atônito quando o vi tão interessado em você. Agora compreendo. Com certeza vai aplicar a libra que você lhe deu, Hughie, pagando-lhe os juros de seis em seis meses e terá uma história interessante para contar depois do jantar.
* Sou mesmo um desastrado - murmurou Hughie. - Acho que a melhor coisa a fazer é ir para a cama e, por favor, Alan, não conte o que aconteceu a ninguém.
* Tolices Hughie. Esse seu gesto prova o seu elevado espírito filantrópico. Fique aí, não vá, fume um cigarrinho e vamos conversar um pouco sobre Laura.
Hughie, aborrecido, não quis ficar e foi para casa. Sentia-se acabrunhado e deixou Alan rindo a mais não poder.
Na manhã seguinte, quando estava se preparando para o primeiro almoço, o criado fez-lhe entrega de um cartão com os seguintes dizeres: "Mousieur Gustave Naudim, de la part de M. le Baron Hausberg". Com certeza vai pedir uma satisfação, pensou Hughie, mandando o criado introduzir o visitante.
O homem já idoso, de cabelos grisalhos e óculos de armação dourada, entrou na sala e disse com ligeiro sotaque francês: "Tenho prazer de falar com Mr. Erskine?"
Hughie fez um sinal afirmativo com a cabeça.
* Venho da parte do barão Hausberg - disse ele.
* Peço apresentar minhas sinceras desculpas ao senhor barão - disse Hughie.
Sorrindo, o visitante prosseguiu:
* O senhor barão incumbiu-me de lhe entregar esta carta.
Hughie pegou o envelope e leu:
* A Hughie Erskine e Laura Merton, como presente de casamento de um velho mendigo". Dentro do envelope havia um cheque de 10 mil libras.
Na ocasião do casamento o barão Hausberg pronunciou um bonito discurso em homenagem aos nubentes e Alan Trevor foi um dos padrinhos.
- Modelos milionários são muito raros - observou Alan - mas milionários modelos são mais raros ainda.
Oscar Wilde
De que vale ser um jovem encantador se não tiver bastante dinheiro? O romance é privilégio dos ricos e não profissão de desempregados. O pobre deve ser prático e prosaico. Vale mais uma renda permanente do que o dom de fascinar. Eram essas as verdades da vida moderna que o jovem Hughie Erskine não conseguia compreender. Pobre Hughie! Apesar de não ser de grande valor intelectual, nunca, em toda sua vida, havia feito ou dito alguma coisa de realmente relevante ou verdadeiramente reprovável. Era, contudo, extremamente simpático com seus cabelos castanhos ondulados, seu perfil de nítidos contornos e seus olhos acinzentados. Era tão bem sucedido com os homens como o era com as mulheres, e possuía todas as habilidades, menos a de ganhar dinheiro. Seu pai deixara-lhe por herança, seu sabre de cavalaria e quinze volumes sobre a História da Guerra Peninsular. Hughie pendurou o sabre acima do seu espelho de quarto; encaixotou os livros numa estande entre o Ruff’s Guide e o Bailey Magazine e passou a viver com a renda de 200 libras, abonadas por uma velha tia. Tentou todos os meios de ganhar a vida. Durante 6 meses arriscou a sorte na bolsa; mas que podia fazer um louva-a-deus entre ursos e touros? Passou algum tempo vendendo chá aos atacadistas mas cansou-se logo do "pekoe" e do "souchong". Em seguida tentou negociar "dry sherry", mas desistiu logo pois o "sherry" era seco demais. Finalmente entregou-se à deliciosa arte de não fazer absolutamente nada e tornou-se um jovem encantador e inútil, com um perfil impecável e sem profissão alguma.
Para complicar as coisas, Hughie amava. Sua eleita era Laura Merton, filha de um coronel reformado que deixara na Índia seu bom-humor e seu bom estômago e nunca mais encontrara nem um nem outro. Laura amava loucamente o jovem Hughie e ele, por sua vez, teria sido capaz de beijar com paixão até os cordões dos seus sapatinhos. Laura e Hughie formavam um dos pares mais combinados de Londres e entre ambos não havia sequer um real. O coronel estimava muito o jovem Hughie mas opunha-se a qualquer compromisso de casamento.
* Meu caro jovem - dizia o velho - Volte quando tiver acumulado com seus próprios esforços umas dez mil libras. Então, poderemos conversar. - Quando ouvia essas palavras, o jovem Hughie, acabrunhado, buscava conforto nos braços da sua amada.
Certa manhã, quando se dirigia para Holland Park onde moravam os Mertons, Hughie resolveu visitar um grande amigo seu, chamado Alan Trevor, que era pintor. A arte de pintar tornou-se epidêmica em nossos dias. Mas além de pintor, Trevor era também um grande artista, e os grandes artistas são muito raros. Trevor era uma estranha criatura um tanto rude; tinha o rosto salpicado de sardas e usava uma barbicha ruiva, sempre emaranhada. Contudo, quando empunhava o pincel, tornava-se um autêntico mestre e todos os seus trabalhos eram muito requestados. Desde o princípio fora fortemente atraído pela sedutora personalidade de Hughie. "Os pintores só deviam conhecer criaturas obtusas e encantadoras. Criaturas que ao contemplar, nos proporcionem um real prazer artístico e ao conversar, um verdadeiro repouso intelectual. Os janotas e as coquetes governam o mundo, ou pelo menos deviam "governar", dizia Trevor freqüentemente. Entretanto, depois de conhecer melhor Hughie, apreciou-o tanto pela sua jovialidade e bom caráter quanto pela sua natureza generosa e espontânea, permitindo-lhe livre acesso ao seu estúdio.
Hughie, ao entrar, encontrou Trevor dando os retoques finais num magnífico quadro que representava um mendigo em seu tamanho natural. O mendigo em pessoa posava sobre um estrado num dos ângulos do estúdio. Era um ancião encarquilhado com o rosto enrugado como um pergaminho e cuja fisionomia expressava infinita tristeza. Um velho manto rústico, rasgado e esfarrapado, recobria seus ombros e seus sapatos remendados estavam rotos em diversos lugares. Tinha uma das mãos apoiada num grosseiro bastão e a outra segurava um chapéu velho, estendido à caridade pública.
* Que extraordinário modelo! - exclamou Hughie, apertando a mão do amigo.
* Extraordinário - bradou Trevor - que dúvida! Um modelo como este não é encontrado todos os dias. Um achado, meu amigo, um verdadeiro achado. Um Velasquez em pessoa! Céus! Queágua-forte teria Rembrant com um modelo como esse!
* Pobre velho - disse Hughie - parece tão miserável. Suponho que para vocês, pintores, uma fisionomia dessas vale uma fortuna.
* Meu caro Hughie, respondeu o pintor, como quer que um mendigo irradie felicidade?
Acomodando-se no sofá, Hughie perguntou:
* Quanto ganha um modelo para posar, Trevor?
* Um shilling por hora.
* E quanto ganha você com o quadro?
* Esse ai me dará uns dois mil.
* Libras?
* Não, guinéus. Pintores, poetas e doutores só recebem guinéus.
* Pois olhe, Alan, na minha opinião os modelos deveriam receber uma porcentagem. O trabalho deles é quase tão árduo quanto do artista.
* Tolices, Hughie! Veja só o trabalho que dá aplicar a tinta na tela e ficar o dia todo em pé, na frente do cavalete. Falar é fácil, mas pode estar certo que há momentos em que a arte atinge a dignidade de um trabalho braçal. Mas deixe de tagarelar. Estou trabalhando e preciso de sossego. Sente e fume.
Depois de algum tempo o criado entrou para avisar o pintor que o fabricante de molduras queria falar-lhe.
* Fique aí, Hughie. Voltarei em minutos - disse Trevor.
O velho mendigo aproveitou a ausência do pintor para descansar numa banqueta ao lado do estrado. Sua fisionomia era uma imagem de dor e tristeza e Hughie, comovido, procurou nos bolsos para ver se encontrava alguma moeda. Encontrou apenas uma libra e alguns pences. "Pobre velho", pensou ele, "precisa mais desse dinheiro do que eu e não me custa nada ficar sem condução quinze dias", e atravessando o estúdio depositou timidamente as moedas na mão do velhinho.
O velhinho assustou-se e, depois, um leve sorriso esboçou-se nos seus lábios murchos.
* Muito obrigado, senhor. Muito obrigado.
Trevor chegou e Hughie, enrubescendo um pouco pelo seu gesto, despediu-se e saiu. Passou o resto do dia em companhia de Laura, foi gentilmente censurado pela sua prodigalidade e voltou a pé para casa.
Naquela noite, eram mais ou menos onze horas, Hughie foi para o Pallete Clube e encontrou Trevor sozinho no salão, bebendo vinho branco com água de seltzer.
* Então, Alan, conseguiu terminar o quadro?
* Terminar e emoldurar, meu caro! - respondeu Trevor. - E a propósito sabe que você fez mais uma conquista? O velhinho que serviu de modelo falou muito de você. Fui obrigado a descrevê-lo na íntegra. Ele quis saber quem é você, onde mora, de que vive, quais são seus planos para o futuro...
* Meu caro Alan - exclamou Hughie - Com certeza quando chegou em casa vou encontrá-lo me esperando. Mas, escute, Trevor. Você parece que está brincando. Saiba que tive muita pena do pobre infeliz. queria poder fazer alguma coisa por ele. Deve ser horrível ser tão desgraçado. Tenho muitas roupas velhas lá em casa. Acha que ele as aceitaria? Estava tão esfarrapado!
* Seus farrapos são a sua magnificência - disse Trevor. - Por dinheiro algum pintá-lo-ia envergando um fraque. O que você chama de farrapos eu chamo de romance. O que para você representa miséria, para mim representa pitoresco. Todavia, falar-lhe-ei de sua oferta.
* Vocês pintores não têm coração - disse Hughie num tom de censura.
* O coração do artista é a sua cabeça - respondeu Trevor - Aliás, o objetivo do artista é compreender o mundo como ele o vê e não reformá-lo como o compreendemos. A chacun son métier. Bem, e agora, diga-me como está Laura. O velho modelo está vivamente interessado nela.
* Quer dizer que ela também foi assunto de conversa entre vocês? - exclamou Hughie.
* Sim. Contei-lhe toda a história do implacável coronel, da formosa Laura e das 10 mil libras.
* Você contou todas essas particularidades ao velho mendigo? - bradou Hughie, enrubescendo vivamente e bastante exaltado.
* Meu caro Hughie - disse Trevor sorrindo - Esse pobre homem que você classifica de mendigo é um dos mais ricos da Europa. Se quiser, pode comprar amanhã toda a Inglaterra sem desfalcar seu crédito bancário. Possui propriedades em todas as capitais, faz suas refeições em baixelas de ouro e pode, quando lhe aprouver, impedir a Rússia de entrar em guerra.
* Que baboseiras está contando, Alan?
* Baboseiras? O ancião que você encontrou hoje no meu estúdio é o barão Hausberg. Um dos meus grandes amigos e admiradores e um dos meus melhores clientes. Compra quase todos os meus quadros e outras coisas mais. Há mais ou menos um mês pediu-me para retratá-lo na caracterização de um mendigo. Que voulez-vous? La fantasie millionnaire! Não posso negar que fez bela figura nos seus farrapos - ou melhor, nos meus farrapos. Comprei-os na Espanha.
* O barão de Hausberg! - murmurou Hughie, perplexo. - Santo Deus! E eu lhe dei uma libra - tartamudeou ele, afundando numa cadeira com ar profundamente consternado!
* Você lhe deu uma libra? - perguntou Trevor rindo. - Nunca mais a verá, meu caro amigo. Son affaire c’est l’argent des autres.
* Devia ter-me avisado, Alan - disse Hughie visivelmente aborrecido. - Teria evitado o ridículo papel que fiz.
* Bem, para começar, Hughie - disse Trevor - nunca me passou pela cabeça que você pudesse distribuir esmolas de maneira tão insensata e tola. Compreendo que se beije um modelo bonito, mas quanto a dar uma libra a um modelo feio - poxa, isso não. Além disso, hoje tinha intenção de não receber ninguém e quando você entrou no estúdio não sabia se o barão Hausberg queria que mencionasse o seu nome. Você compreende, com aqueles trajes...
* Deve julgar-me um idiota.
* Ao contrário. Quando você saiu ficou muito jovial e murmurava baixinho esfregando as mãos enrugadas. Fiquei um pouco atônito quando o vi tão interessado em você. Agora compreendo. Com certeza vai aplicar a libra que você lhe deu, Hughie, pagando-lhe os juros de seis em seis meses e terá uma história interessante para contar depois do jantar.
* Sou mesmo um desastrado - murmurou Hughie. - Acho que a melhor coisa a fazer é ir para a cama e, por favor, Alan, não conte o que aconteceu a ninguém.
* Tolices Hughie. Esse seu gesto prova o seu elevado espírito filantrópico. Fique aí, não vá, fume um cigarrinho e vamos conversar um pouco sobre Laura.
Hughie, aborrecido, não quis ficar e foi para casa. Sentia-se acabrunhado e deixou Alan rindo a mais não poder.
Na manhã seguinte, quando estava se preparando para o primeiro almoço, o criado fez-lhe entrega de um cartão com os seguintes dizeres: "Mousieur Gustave Naudim, de la part de M. le Baron Hausberg". Com certeza vai pedir uma satisfação, pensou Hughie, mandando o criado introduzir o visitante.
O homem já idoso, de cabelos grisalhos e óculos de armação dourada, entrou na sala e disse com ligeiro sotaque francês: "Tenho prazer de falar com Mr. Erskine?"
Hughie fez um sinal afirmativo com a cabeça.
* Venho da parte do barão Hausberg - disse ele.
* Peço apresentar minhas sinceras desculpas ao senhor barão - disse Hughie.
Sorrindo, o visitante prosseguiu:
* O senhor barão incumbiu-me de lhe entregar esta carta.
Hughie pegou o envelope e leu:
* A Hughie Erskine e Laura Merton, como presente de casamento de um velho mendigo". Dentro do envelope havia um cheque de 10 mil libras.
Na ocasião do casamento o barão Hausberg pronunciou um bonito discurso em homenagem aos nubentes e Alan Trevor foi um dos padrinhos.
- Modelos milionários são muito raros - observou Alan - mas milionários modelos são mais raros ainda.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
O MODELO MILIONARIO
O GIGANTE EGOISTA
O GIGANTE EGOÍSTA
Oscar Wilde
Todas as tardes, ao saírem do colégio, as crianças costumavam a ir brincar no jardim do Gigante.
Era um jardim lindo e grande, com grama verde e suave. Aqui e ali, sobre a grama, apareciam flores belas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, abriam-se em flores delicadas em tons de rosa e pérola, e davam ricos frutos no outono. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão docemente que as crianças costumavam parar de brincar para ouvi-los.
- Como nos sentimos felizes aqui! - exclamavam elas.
Certo dia ele voltou. Ele tinha andado visitando seu amigo, o ogre da Cornualha, e ficara sete anos com ele. Depois de sete anos ele já havia dito tudo que tinha o que não tinha para dizer, já que sua conversa era limitada, e resolveu voltar para seu próprio castelo. Ao chegar, ele viu as crianças brincando no jardim.
- O que é que vocês estão fazendo aqui? - gritou ele com uma voz muito ríspida, e as crianças saíram correndo.
- O meu jardim é meu jardim - disse o Gigante. - Qualquer um pode compreender isso. Eu não vou permitir que ninguém brinque nele, a não ser eu mesmo.
De modo que ele construiu um muro alto em torno do jardim e colocou um cartaz de aviso.
OS INVASORES SERÃO PROCESSADOS!
Ele era um Gigante muito egoísta.
As pobres crianças agora não tinham mais onde brincar. Elas tentaram brincar na estrada, mas a estrada era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e eles não gostavam. Começaram a passear em torno do muro depois das aulas, conversando sobre o lindo jardim que ficava lá dentro. "Como éramos felizes lá!", diziam uma ás outras.
Então chegou a Primavera, e por todo o país apareceram pequenas flores e pequenos pássaros. Só no jardim do Gigante Egoísta é que continuava a ser inverno. Os passarinhos não gostavam de cantar lá, porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florescer. Uma vez uma flor bonita chegou a brotar, mas ao ver o cartaz de aviso ficou com tanta pena das crianças que se enfiou de volta no chão e adormeceu. Os únicos que estavam contentes eram a Neve e o Gelo.
- A Primavera se esqueceu deste jardim - eles exclamaram -, de modo que podemos viver aqui o ano inteiro.
A neve cobriu toda a grama com seu manto branco, e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Eles convidaram o Vento do Norte para se hospedar com eles, e ele veio. Todo enrolado em peles, rugia o dia inteiro pelo jardim, derrubando as chaminés com seu sopro.
- Este lugar é ótimo - disse ele. - Nós precisamos convidar o Granizo para vir fazer uma visita.
E o Granizo apareceu. Todos os dias, durante três horas, ele matracava no telhado do castelo até quebrar quase todas as telhas, e depois corria, dando voltas pelo jardim o mais depressa que podia. Sempre vestido de cinza, soprava gelo para todo lado.
- Não entendo porque as Primavera está demorando tanto a chegar! - disse o Gigante Egoísta, sentado junto à janela e olhando para seu jardim frio e branco. - Espero que o tempo mude logo.
Mas a Primavera não apareceu, nem o Verão. O Outono trouxe frutos dourados para todos os jardins, mas nenhum para o do Gigante.
- Ele é muito egoísta - disse o Outono.
De modo que ali ficou sendo sempre inverno, e o Vento Norte e o Granizo, a Neve e o Gelo dançavam em meio às árvores.
Certa manhã, o Gigante estava deitado, acordado, na cama, quando ouviu uma música linda Soava com tal doçura em seus ouvidos que ele até pensou que deviam ser os músicos do Rei que passavam. Na realidade era apenas um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que ele não ouvia um só passarinho em seu jardim que aquela parecia ser a música mais bonita do mudo. E então o Granizo parou de dançar sobre a cabeça dele, e o Vento do Norte parou de rugir, e um perfume delicioso chegou até ele, através da janela aberta.
- Acho que finalmente a Primavera chegou - disse o Gigante. - E, pulando da cama, olhou par fora.
O que ele viu?
A visão mais bonita que se possa imaginar. Por um buraquinho no muro as crianças haviam conseguido entrar, e estavam todas sentadas nos ramos das árvores. Em todas as árvores que ele conseguia ver havia uma criança. E as árvores estavam tão contentes de terem as crianças de volta que se cobriram de flores, balançando delicadamente os galhos, por cima da cabeça da meninada. Os passarinhos voavam de um lado para outro, chilreando de prazer, e as flores espiavam e riam. Era uma cena linda, e só em um canto é que continuava as ser inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele estava de pé um menininho. Ele era tão pequeno que não conseguia alcançar os ramos da árvore, e ficou andando em volta dela, chorando, muito sentido. A pobre árvore continuava coberta de neve e de gelo, e o Vento do Norte soprava e rugia acima dela.
- Sobe logo, menino! - dizia a Árvore, curvando os ramos o mais que podia. Mas o menino era pequeno de mais.
E o coração do Gigante se derreteu quando ele olhou lá para fora.
- Como eu tenho sido egoísta! - disse ele. - Agora já sei porque a Primavera não aparecia por aqui. Eu vou colocar aquele menininho em cima daquela árvore, depois vou derrubar o muro, e meu jardim será um lugar onde as crianças poderão brincar para sempre e sempre.
Ele estava realmente arrependido do que tinha feito. E assim, desceu a escada, abriu a porta da frente com toa a delicadeza, e saiu para o jardim. Mas quando as crianças o viram ficaram tão assustadas que fugiram, e o inverno voltou ao jardim. Só o menininho pequeno é que não fugiu, porque seus olhos estavam marejados de lágrimas e não viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se de mansinho por trás dele, pegou delicadamente em sua mão e o colocou em cima da árvore. A árvore imediatamente floresceu, e os passarinhos vieram cantar nela; e o meniniho esticou os braços, passou-os em torno do pescoço do Gigante e o beijou. Quando viram eu o Gigante não era mais mau, as outras crianças voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.
- Agora o jardim é de vocês, crianças - disse o Gigante. E pegando um imenso machado, derrubou o muro. Quando toda a gente começava a iro para o mercado, ao meio-dia, lá estava o Gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que todos já haviam visto.
Elas brincavam o dia inteiro, mas quando chegava a noite despediam-se do Gigante.
- Mas onde está seu companheirinho? - perguntou ele. - O menino que eu botei em cima da árvore.
O Gigante gostava dele mais do que de todos os outros, porque ele lhe havia dado um beijo.
- Nós não sabemos - responderam as crianças. - Ele foi embora.
- Vocês têm de dizer a ele par anão deixar de vir aqui amanhã - disse o Gigante.
Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava, e que jamais o haviam visto antes. O Gigante ficou muito triste.
Todas as tardes, quando acabavam as aulas, as crianças iam brincar como Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais apareceu. O Gigante era muito bondoso com todas as crianças, mas sentia saudades de seu primeiro amiguinho, e muitas vezes falava nele.
- Como eu gostaria de vê-lo! - costumava dizer.
Os anos se passaram, e o Gigante ficou mais velho e fraco. Ele já não conseguia brincar direito, e então ficava sentado em uma poltrona enorme, olhando as crianças que brincavam e admirando seu jardim.
- Tenho tantas flores lindas - dizia ele -, ma as crianças são as flores mais bonitas de todas.
Certa manhã de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora já não odiava o inverno, pois sabia que este era apenas a Primavera enquanto dormia, e que as flores estavam descansando.
De repente ele esfregou os olhos, espantado, e olhou, e olhou, e olhou. Era por certo uma visão maravilhosa. No cantinho mais distante do jardim havia uma árvore toda coberta de flores brancas. Seus ramos eram dourados, carregados de frutos de prata, e debaixo deles estavam o menininho que ela amava.
O Gigante correu pelas escadas, com a maior alegria, e saiu para o jardim. Cruzou depressa o gramado e chegou perto do menino. E quando chegou bem perto, seu rosto ficou rubro de raiva, e ele disse:
- Quem ousou te ferir?
Nas palmas das mãos da criança estavam as marcas de dois pregos, como m haviam marcas de dois pregos em seus pezinhos.
- Quem ousou te ferir? - gritou o Gigante. - Dize-me, para que eu possa tomar de minha grande espada para matá-lo.
- Não - respondeu o menino -, pois essas são as feridas do Amor.
Quem és? - perguntou o Gigante, e quando o temor apossou-se dele, ajoelhou-se diante da criança.
A criança sorriu para o Gigante e lhe disse:
- Você me deixou, certa vez, brincar em seu jardim, e hoje você irá comigo par ao meu jardim que é o Paraíso.
Naquela tarde, quando as crianças chegaram correndo, encontraram o Gigante morto, deitado debaixo da árvore, todo coberto por flores brancas.
Oscar Wilde
Todas as tardes, ao saírem do colégio, as crianças costumavam a ir brincar no jardim do Gigante.
Era um jardim lindo e grande, com grama verde e suave. Aqui e ali, sobre a grama, apareciam flores belas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, abriam-se em flores delicadas em tons de rosa e pérola, e davam ricos frutos no outono. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão docemente que as crianças costumavam parar de brincar para ouvi-los.
- Como nos sentimos felizes aqui! - exclamavam elas.
Certo dia ele voltou. Ele tinha andado visitando seu amigo, o ogre da Cornualha, e ficara sete anos com ele. Depois de sete anos ele já havia dito tudo que tinha o que não tinha para dizer, já que sua conversa era limitada, e resolveu voltar para seu próprio castelo. Ao chegar, ele viu as crianças brincando no jardim.
- O que é que vocês estão fazendo aqui? - gritou ele com uma voz muito ríspida, e as crianças saíram correndo.
- O meu jardim é meu jardim - disse o Gigante. - Qualquer um pode compreender isso. Eu não vou permitir que ninguém brinque nele, a não ser eu mesmo.
De modo que ele construiu um muro alto em torno do jardim e colocou um cartaz de aviso.
OS INVASORES SERÃO PROCESSADOS!
Ele era um Gigante muito egoísta.
As pobres crianças agora não tinham mais onde brincar. Elas tentaram brincar na estrada, mas a estrada era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e eles não gostavam. Começaram a passear em torno do muro depois das aulas, conversando sobre o lindo jardim que ficava lá dentro. "Como éramos felizes lá!", diziam uma ás outras.
Então chegou a Primavera, e por todo o país apareceram pequenas flores e pequenos pássaros. Só no jardim do Gigante Egoísta é que continuava a ser inverno. Os passarinhos não gostavam de cantar lá, porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florescer. Uma vez uma flor bonita chegou a brotar, mas ao ver o cartaz de aviso ficou com tanta pena das crianças que se enfiou de volta no chão e adormeceu. Os únicos que estavam contentes eram a Neve e o Gelo.
- A Primavera se esqueceu deste jardim - eles exclamaram -, de modo que podemos viver aqui o ano inteiro.
A neve cobriu toda a grama com seu manto branco, e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Eles convidaram o Vento do Norte para se hospedar com eles, e ele veio. Todo enrolado em peles, rugia o dia inteiro pelo jardim, derrubando as chaminés com seu sopro.
- Este lugar é ótimo - disse ele. - Nós precisamos convidar o Granizo para vir fazer uma visita.
E o Granizo apareceu. Todos os dias, durante três horas, ele matracava no telhado do castelo até quebrar quase todas as telhas, e depois corria, dando voltas pelo jardim o mais depressa que podia. Sempre vestido de cinza, soprava gelo para todo lado.
- Não entendo porque as Primavera está demorando tanto a chegar! - disse o Gigante Egoísta, sentado junto à janela e olhando para seu jardim frio e branco. - Espero que o tempo mude logo.
Mas a Primavera não apareceu, nem o Verão. O Outono trouxe frutos dourados para todos os jardins, mas nenhum para o do Gigante.
- Ele é muito egoísta - disse o Outono.
De modo que ali ficou sendo sempre inverno, e o Vento Norte e o Granizo, a Neve e o Gelo dançavam em meio às árvores.
Certa manhã, o Gigante estava deitado, acordado, na cama, quando ouviu uma música linda Soava com tal doçura em seus ouvidos que ele até pensou que deviam ser os músicos do Rei que passavam. Na realidade era apenas um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que ele não ouvia um só passarinho em seu jardim que aquela parecia ser a música mais bonita do mudo. E então o Granizo parou de dançar sobre a cabeça dele, e o Vento do Norte parou de rugir, e um perfume delicioso chegou até ele, através da janela aberta.
- Acho que finalmente a Primavera chegou - disse o Gigante. - E, pulando da cama, olhou par fora.
O que ele viu?
A visão mais bonita que se possa imaginar. Por um buraquinho no muro as crianças haviam conseguido entrar, e estavam todas sentadas nos ramos das árvores. Em todas as árvores que ele conseguia ver havia uma criança. E as árvores estavam tão contentes de terem as crianças de volta que se cobriram de flores, balançando delicadamente os galhos, por cima da cabeça da meninada. Os passarinhos voavam de um lado para outro, chilreando de prazer, e as flores espiavam e riam. Era uma cena linda, e só em um canto é que continuava as ser inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele estava de pé um menininho. Ele era tão pequeno que não conseguia alcançar os ramos da árvore, e ficou andando em volta dela, chorando, muito sentido. A pobre árvore continuava coberta de neve e de gelo, e o Vento do Norte soprava e rugia acima dela.
- Sobe logo, menino! - dizia a Árvore, curvando os ramos o mais que podia. Mas o menino era pequeno de mais.
E o coração do Gigante se derreteu quando ele olhou lá para fora.
- Como eu tenho sido egoísta! - disse ele. - Agora já sei porque a Primavera não aparecia por aqui. Eu vou colocar aquele menininho em cima daquela árvore, depois vou derrubar o muro, e meu jardim será um lugar onde as crianças poderão brincar para sempre e sempre.
Ele estava realmente arrependido do que tinha feito. E assim, desceu a escada, abriu a porta da frente com toa a delicadeza, e saiu para o jardim. Mas quando as crianças o viram ficaram tão assustadas que fugiram, e o inverno voltou ao jardim. Só o menininho pequeno é que não fugiu, porque seus olhos estavam marejados de lágrimas e não viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se de mansinho por trás dele, pegou delicadamente em sua mão e o colocou em cima da árvore. A árvore imediatamente floresceu, e os passarinhos vieram cantar nela; e o meniniho esticou os braços, passou-os em torno do pescoço do Gigante e o beijou. Quando viram eu o Gigante não era mais mau, as outras crianças voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.
- Agora o jardim é de vocês, crianças - disse o Gigante. E pegando um imenso machado, derrubou o muro. Quando toda a gente começava a iro para o mercado, ao meio-dia, lá estava o Gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que todos já haviam visto.
Elas brincavam o dia inteiro, mas quando chegava a noite despediam-se do Gigante.
- Mas onde está seu companheirinho? - perguntou ele. - O menino que eu botei em cima da árvore.
O Gigante gostava dele mais do que de todos os outros, porque ele lhe havia dado um beijo.
- Nós não sabemos - responderam as crianças. - Ele foi embora.
- Vocês têm de dizer a ele par anão deixar de vir aqui amanhã - disse o Gigante.
Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava, e que jamais o haviam visto antes. O Gigante ficou muito triste.
Todas as tardes, quando acabavam as aulas, as crianças iam brincar como Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais apareceu. O Gigante era muito bondoso com todas as crianças, mas sentia saudades de seu primeiro amiguinho, e muitas vezes falava nele.
- Como eu gostaria de vê-lo! - costumava dizer.
Os anos se passaram, e o Gigante ficou mais velho e fraco. Ele já não conseguia brincar direito, e então ficava sentado em uma poltrona enorme, olhando as crianças que brincavam e admirando seu jardim.
- Tenho tantas flores lindas - dizia ele -, ma as crianças são as flores mais bonitas de todas.
Certa manhã de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora já não odiava o inverno, pois sabia que este era apenas a Primavera enquanto dormia, e que as flores estavam descansando.
De repente ele esfregou os olhos, espantado, e olhou, e olhou, e olhou. Era por certo uma visão maravilhosa. No cantinho mais distante do jardim havia uma árvore toda coberta de flores brancas. Seus ramos eram dourados, carregados de frutos de prata, e debaixo deles estavam o menininho que ela amava.
O Gigante correu pelas escadas, com a maior alegria, e saiu para o jardim. Cruzou depressa o gramado e chegou perto do menino. E quando chegou bem perto, seu rosto ficou rubro de raiva, e ele disse:
- Quem ousou te ferir?
Nas palmas das mãos da criança estavam as marcas de dois pregos, como m haviam marcas de dois pregos em seus pezinhos.
- Quem ousou te ferir? - gritou o Gigante. - Dize-me, para que eu possa tomar de minha grande espada para matá-lo.
- Não - respondeu o menino -, pois essas são as feridas do Amor.
Quem és? - perguntou o Gigante, e quando o temor apossou-se dele, ajoelhou-se diante da criança.
A criança sorriu para o Gigante e lhe disse:
- Você me deixou, certa vez, brincar em seu jardim, e hoje você irá comigo par ao meu jardim que é o Paraíso.
Naquela tarde, quando as crianças chegaram correndo, encontraram o Gigante morto, deitado debaixo da árvore, todo coberto por flores brancas.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
O GIGANTE EGOÍSTA
O FILHO DA ESTRELA
O FILHO DA ESTRELA
Oscar Wilde
Era uma vez dois obres Lenhadores que estavam indo para casa através de uma grande floresta de pinheiros. Era inverno, e fazia um frio terrível. A neve estava alta no chão e recobria os ramos das árvores; o gelo ia estourando os raminhos mais tenros, enquanto passavam; e quando chegaram à Torrente da Montanha ela estava pairando no ar, imóvel, pois o Rei do Gelo já a beijara.
O frio era tão intenso que nem mesmo os animais e os pássaros sabiam o que pensar.
- Uuuhh! - rosnou o Lobo, enquanto capengava entre as plantas rasteiras, com o rabo entre as pernas. - Isso é o que o que chamo de tempo realmente péssimo. Por que será que o governo não faz alguma coisa?
- Piu! Piu! Piu! - chilrearam os Pintarroxos. - A velha Terra morreu e foi embrulhada em uma mortalha branca.
- A Terra vai se casar, e esse é seu vestido de noiva - sussurrou uma Pomba-rola para outra.
Seus pezinhos cor-de-rosa estavam congelados, mas as pombas achavam que era seu dever encarar tudo com certo romantismo.
- Que bobagem! - grunhiu o Lobo. - Estou dizendo que é culpa do Governo, e se não me acreditarem, eu as comerei.
O Lobo sempre tomava atitudes muito práticas, e jamais deixou de encontrar bons argumentos.
- Bom, de minha parte - disse o Pica-pau, um filósofo nato -, procuro teorias atômicas para minhas explicações. Quando uma coisa é assim, ela é assim mesmo e, no momento, elas estão muito frias.
E estava terrivelmente frio. Os Esquilinhos, que viviam dentro de um pinheiro muito alto, e os Coelhos se enrolavam em suas tocas, sem ousar se quer olhar para fora. As únicas que pareciam estar se divertindo eram as grandes Corujas chifrudas. Suas penas estavam durinhas com a geada, mas elas não se importavam, e virando seus grandes olhos amarelos, chamavam umas às outras pela floresta:
- Tu-uit! Tu-ú! Tu-uit! Tu-ú! Que tempo ótimo está fazendo!
E ela iam os dois Lenhadores, soprando com força os dedos, e batendo com suas enormes botas ferradas neve congelada. Uma vez eles caíram num monte de neve mais fundo e saíram parecendo dois moleiros quando moem farinha e ficam todos brancos, e outra vez escorregaram no gelo liso da água congelada dos pântanos, a lenha dos feixes, e eles tiveram de apanhá-la e tornar a amarrá-la; e ainda uma outra vez pensaram que estivessem perdidos e ficaram apavorados, pois sabiam o quanto a Neve é cruel para com aqueles que dormem em seus braços. Mas continuaram confiando no bom São Martinho, que zela pelos viajantes, voltaram atrás pisando nas próprias pegadas, e começaram a andar com muita cautela, até chegarem à fímbria da floresta e verem, lá embaixo no vale, as luzes da aldeia onde moravam.
Eles ficaram tão contentes de se salvarem que riram alto e a Terra pareceu-lhes uma flor de prata, e a Lua uma flor de ouro.
No entanto, depois eles ficaram triste, pois se lembraram do quanto eram pobres, e um disse ao outro:
- Por que nos alegramos, se a vida é para os ricos e não para gente como nós? Melhor seria se tivéssemos morrido de frio na floresta, ou que alguma fera selvagem nos tivesse atacado e matado.
- É verdade que alguns têm muito, enquanto outros têm pouco - respondeu seu companheiro. - A injustiça é distribuída por todo o mundo, e não há divisão eqüitativa de nada, a não ser de tristeza.
Mas, enquanto se queixavam de sua miséria, aconteceu uma coisa estranha. Caiu do céu uma estrela muito brilhante e muito bonita. Ela escorregou pelo lado do céu, passando por outras estrelas em seu caminho, e enquanto os dois a observavam deslumbrados, ela pareceu-lhes cair atrás de uma moita de chorões que ficava bem junto a um aprisco não mais distante do que o alcance de uma pedra que arremessassem.
- Ora! Eis ali uma pilha de ouro para aquele que a achar - gritaram eles, e saíram correndo, de tal modo ansiavam eles pelo ouro.
Um deles correu mais rápido do que o outro e passou-lhe a frente, forçando seu caminho pelos chorões até que saiu do outro lado onde - que surpresa! - realmente havia uma coisa dourada na neve branca. Então ele correu e, curvando-se, pôs as duas mãos em cima dela: era um manto de tecido dourado, curiosamente bordado com estrelas e enrolado com muitas dobras. Ele gritou para seu companheiro que encontrara o tesouro caído do céu, e quando o camarada chegou, ambos ficaram sentados no chão e foram soltando as dobras do manto, a fim de dividirem as moedas de ouro. Mas ai!, não havia lá dentro nem ouro, nem prata nem tesouro de espécie alguma, mas apenas um criancinha adormecida.
Disseram então um ao outro:
- Esse é um final amargo para nossas esperanças, e em sequer boa fortuna nós temos, pois que adianta uma criança a um homem? Vamos deixá-la aqui e continuar nosso caminho, pois nós somos pobres, e já temos nossos próprios filhos, cujo o pão não podemos dar a outros.
- Não, é um ato de maldade deixar a criança para morrer aqui na neve, e muito embora eu seja tão pobre quanto você, e tenha muitas bocas para alimentar, e muito pouco na panela, mesmo assim eu o levarei para casa, e minha mulher há de cuidar dele.
E como muito carinho pegou a criança, enrolou o manto em volta dela para protegê-la do vento impiedoso, e foi descendo a colina para a aldeia, com seu camrada espantado diante de sua imensa tolice e da moleza de seu coração.
- Você ficou com a criança, então me dê o manto, pois é justo que compartilhemos tudo.
- Não, pois o manto não é nem seu nem meu, mas da própria criança - e desejando-lhe que fosse com Deus, foi para sua casa e bateu na porta.
Quando sua mulher abriu a porta e viu que o marido voltara para casa a salvo, ela jogou os braços em torno do pescoço dele e o beijou, tirou-lhe das costas o feixe de lenha de lenha, limpado a neve de suas botas e pediu-lhe que entrasse.
Porém ele disse:
- Encontrei uma coisa na floresta e trouxe para que você cuide dela - e não arredou pé da soleira da porta.
- O que é? - exclamou ela. - Mostre-me, pois a casa está vazia e temos necessidade de muitas coisas.
E ele, atirando o manto para as costas mostrou-lhe a criança adormecida.
- Ai, marido! - murmurou ela. - Será que já não temos bastante filhos, e você ainda precisa trazer um enjeitadinho para nossa lareira? Quem sabe se ele não pode trazer má sorte? Quem zelará por nós? E quem nos alimentará?
- - Ora, Deus cuida até dos pardais, e os alimenta - respondeu ele.
- - E os pardais não morrem de fome no inverno? - perguntou-lhe a mulher. - E não é inverno agora? - e o marido não respondeu nada, mas não arredou o pé da soleira da porta. Um vento cortante entrou pela porta aberta fazendo a mulher tremer. Ela teve um arrepio e disse:
- Por que não fecha essa porta? O vento que entra está gelado, e eu estou com frio.
- Na casa em que o coração é duro não é sempre gelado o vento? - perguntou ele.
A mulher não respondeu nada, mas chegou mais perto do fogo.
Depois de algum tempo ela olhou para ele, como os olhos marejados de lágrimas, e ele logo entrou e colocou a criança nos braços dela; ela a beijou, colocando-a na caminha onde estava deitada o caçula do casal. Na manhã seguinte, o Lenhador pegou o curioso manto dourado e colocou-o em uma grande arca; também guardou um grande fio de contas de âmbar que estava no pescoço da criança.
E assim o Filho-da-Estrela foi criado com os filhos do Lenhador, sentando-se à mesma que eles, sendo seu companheiro de brincadeiras.
A cada ano ele ficava mais bonito, de modo que todos os que moravam na aldeia ficavam maravilhados, pois enquanto os outros eram morenos de cabelos negros, ele era branco e delicado como marfim lavrado, e seus cachos pareciam pétalas de junquilhos. Seus lábios também pareciam pétalas de alguma flor rubra, e seus olhos eram como violetas que nascem junto ao regato de água pura, e seu corpo era como o narciso que cresce no campo onde não chega a foice.
Porém essa beleza o fez mau, pois tornou-o orgulhoso, cruel e egoísta. Os filhos do Lenhador e as outras crianças da aldeia ele desprezava, dizendo que eram de pais humildes, enquanto ele era nobre, já que nascera de um Estrela; e por isso dizia-se amo de todos eles, tratando-os como seus servos. Não tinha piedade para com os pobres, ou os que eram cegos, aleijados, ou de algum modo deficientes, antes atirando pedras neles para espantá-los em direção à estrada , dizendo-lhe que fossem mendigar seu pão em outra parte. De modo que ninguém, a não ser os bandidos, costumavam vir à aldeia para pedir esmolas. Ele parecia, na verdade, enamorado da beleza, debochando dos fracos e feios, menosprezando-os de todo modo. Mas amava a si mesmo, e no verão, quando não havia vento, ficava deitado junto ao poço do pomar do padre, olhando par o fundo a fim de ver seu próprio roso, rindo do prazer que sentia em ser tão belo.
Muitas vezes o Lenhador e sua mulher o repreenderam dizendo:
- Nós não o tratamos como você trata os outros que estão desamparados e não têm quem o socorra. Por que razão é tão cruel para com todos aqueles que precisam de piedade?
Mas o Filho-da-Estrela não dava atenção às suas palavras, e franzindo a testa e fazendo um muxoxo, voltava para a companhia dos outros meninos, para ser o chefe. Seus companheiros o seguiam, pois ele era lindo, rápido na corrida, sabia dançar, tocar flauta e fazer música. Onde quer que o Filho-da-Estrela os levasse, eles o seguiam, e o que quer que o Filho-da-Estrela lhes mandassem fazer, eles faziam. Quando ele furava com um junco pontudo os olhos da toupeira, eles riam; e quando ele atirava pedras em algum leproso, eles também riam. Em todas as coisas era ele quem os guiava, e seus corações foram ficando tão duros quanto o dele.
- Olhem! Lá está sentada uma mendiga imunda debaixo daquela linda castanheira, com suas folhas verdes. Venham, vamos expulsá-la daqui, pois é feia e mal-enjambrada.
Então ele se aproximou, atirando-lhe umas pedras e caçoou dela; ela ficou apavorada, mas nem por um instante tirou dele o seu olhar. Quando o Lenhador, que estava cortando lenha ali por perto, viu o que o Filho-da-Estrela estava fazendo, veio correndo e repreendeu-lhe, dizendo:
- Você tem mesmo um coração de pedra e não sabe o que é piedade, pois que mal lhe fez essa pobre mulher para que você a trate desse modo?
O Filho-da-Estrela ficou rubro de raiva, bateu com o pé no chão e disse:
- Quem é você para questionar o que eu faço? Eu não sou seu filho para ter de obedecê-lo.
- É verdade - respondeu o Lenhador -, mas eu tive pena de você quando o encontrei na florestas.
Quando a mendiga ouviu essas palavras, deu um grito e caiu desmaiada. O Lenhador carregou-a para sua casa, sua mulher cuidou dela, e quando ela voltou a si do desmaio deles puseram comida e bebida na frente dela e disseram que se reconfortasse.
Sem querer comer nem beber, disse ela ao Lenhador:
- O senhor não disse que a criança foi achada na floresta? E não faz hoje exatamente dez anos?
Então disse o Lenhador:
- Sim, foi na floresta que o encontrei, e faz hoje exatamente dez anos.
- E que sinais encontrou com ele? - gritou ele. - Não trazia ele no pescoço um colar de âmbar?
Não estava ele enrolado em manta de tecido de ouro bordado com estrelas?
- É verdade - respondeu o Lenhador -, foi exatamente assim como disse - e, pegando o colar e a manta na arca, mostrou-os a ela.
- Ele é meu filhinho que eu perdi na floresta. Peço-lhe que mande logo chamá-lo, pois eu tenho
andado por todo o mundo à procura dele.
Então o Lenhador e sua mulher saíram e chamaram o Filho-da-Estrela dizendo-lhe:
- Entre em casa, e lá há de encontrar sua mãe, que o espera.
Ele entrou correndo, espantado e muito alegre. Porém ao ver quem esperava lá dentro, ele riu com
desdém dizendo: - Bem, aonde esta minha mãe? Pois aqui não vejo ninguém se não essa mendiga.
E a mulher respondeu-lhe.
- Sou eu a sua mãe.
- Esta louca, como pode dizer uma coisa dessas - gritou o Filho-da-Estrela com raiva. - Eu não sou filho seu, pois você não passa de uma mendiga. É muito feia e andrajosa, portanto, sai já daqui, e não me deixe tornar a ver sua cara horrenda.
Oscar Wilde
Era uma vez dois obres Lenhadores que estavam indo para casa através de uma grande floresta de pinheiros. Era inverno, e fazia um frio terrível. A neve estava alta no chão e recobria os ramos das árvores; o gelo ia estourando os raminhos mais tenros, enquanto passavam; e quando chegaram à Torrente da Montanha ela estava pairando no ar, imóvel, pois o Rei do Gelo já a beijara.
O frio era tão intenso que nem mesmo os animais e os pássaros sabiam o que pensar.
- Uuuhh! - rosnou o Lobo, enquanto capengava entre as plantas rasteiras, com o rabo entre as pernas. - Isso é o que o que chamo de tempo realmente péssimo. Por que será que o governo não faz alguma coisa?
- Piu! Piu! Piu! - chilrearam os Pintarroxos. - A velha Terra morreu e foi embrulhada em uma mortalha branca.
- A Terra vai se casar, e esse é seu vestido de noiva - sussurrou uma Pomba-rola para outra.
Seus pezinhos cor-de-rosa estavam congelados, mas as pombas achavam que era seu dever encarar tudo com certo romantismo.
- Que bobagem! - grunhiu o Lobo. - Estou dizendo que é culpa do Governo, e se não me acreditarem, eu as comerei.
O Lobo sempre tomava atitudes muito práticas, e jamais deixou de encontrar bons argumentos.
- Bom, de minha parte - disse o Pica-pau, um filósofo nato -, procuro teorias atômicas para minhas explicações. Quando uma coisa é assim, ela é assim mesmo e, no momento, elas estão muito frias.
E estava terrivelmente frio. Os Esquilinhos, que viviam dentro de um pinheiro muito alto, e os Coelhos se enrolavam em suas tocas, sem ousar se quer olhar para fora. As únicas que pareciam estar se divertindo eram as grandes Corujas chifrudas. Suas penas estavam durinhas com a geada, mas elas não se importavam, e virando seus grandes olhos amarelos, chamavam umas às outras pela floresta:
- Tu-uit! Tu-ú! Tu-uit! Tu-ú! Que tempo ótimo está fazendo!
E ela iam os dois Lenhadores, soprando com força os dedos, e batendo com suas enormes botas ferradas neve congelada. Uma vez eles caíram num monte de neve mais fundo e saíram parecendo dois moleiros quando moem farinha e ficam todos brancos, e outra vez escorregaram no gelo liso da água congelada dos pântanos, a lenha dos feixes, e eles tiveram de apanhá-la e tornar a amarrá-la; e ainda uma outra vez pensaram que estivessem perdidos e ficaram apavorados, pois sabiam o quanto a Neve é cruel para com aqueles que dormem em seus braços. Mas continuaram confiando no bom São Martinho, que zela pelos viajantes, voltaram atrás pisando nas próprias pegadas, e começaram a andar com muita cautela, até chegarem à fímbria da floresta e verem, lá embaixo no vale, as luzes da aldeia onde moravam.
Eles ficaram tão contentes de se salvarem que riram alto e a Terra pareceu-lhes uma flor de prata, e a Lua uma flor de ouro.
No entanto, depois eles ficaram triste, pois se lembraram do quanto eram pobres, e um disse ao outro:
- Por que nos alegramos, se a vida é para os ricos e não para gente como nós? Melhor seria se tivéssemos morrido de frio na floresta, ou que alguma fera selvagem nos tivesse atacado e matado.
- É verdade que alguns têm muito, enquanto outros têm pouco - respondeu seu companheiro. - A injustiça é distribuída por todo o mundo, e não há divisão eqüitativa de nada, a não ser de tristeza.
Mas, enquanto se queixavam de sua miséria, aconteceu uma coisa estranha. Caiu do céu uma estrela muito brilhante e muito bonita. Ela escorregou pelo lado do céu, passando por outras estrelas em seu caminho, e enquanto os dois a observavam deslumbrados, ela pareceu-lhes cair atrás de uma moita de chorões que ficava bem junto a um aprisco não mais distante do que o alcance de uma pedra que arremessassem.
- Ora! Eis ali uma pilha de ouro para aquele que a achar - gritaram eles, e saíram correndo, de tal modo ansiavam eles pelo ouro.
Um deles correu mais rápido do que o outro e passou-lhe a frente, forçando seu caminho pelos chorões até que saiu do outro lado onde - que surpresa! - realmente havia uma coisa dourada na neve branca. Então ele correu e, curvando-se, pôs as duas mãos em cima dela: era um manto de tecido dourado, curiosamente bordado com estrelas e enrolado com muitas dobras. Ele gritou para seu companheiro que encontrara o tesouro caído do céu, e quando o camarada chegou, ambos ficaram sentados no chão e foram soltando as dobras do manto, a fim de dividirem as moedas de ouro. Mas ai!, não havia lá dentro nem ouro, nem prata nem tesouro de espécie alguma, mas apenas um criancinha adormecida.
Disseram então um ao outro:
- Esse é um final amargo para nossas esperanças, e em sequer boa fortuna nós temos, pois que adianta uma criança a um homem? Vamos deixá-la aqui e continuar nosso caminho, pois nós somos pobres, e já temos nossos próprios filhos, cujo o pão não podemos dar a outros.
- Não, é um ato de maldade deixar a criança para morrer aqui na neve, e muito embora eu seja tão pobre quanto você, e tenha muitas bocas para alimentar, e muito pouco na panela, mesmo assim eu o levarei para casa, e minha mulher há de cuidar dele.
E como muito carinho pegou a criança, enrolou o manto em volta dela para protegê-la do vento impiedoso, e foi descendo a colina para a aldeia, com seu camrada espantado diante de sua imensa tolice e da moleza de seu coração.
- Você ficou com a criança, então me dê o manto, pois é justo que compartilhemos tudo.
- Não, pois o manto não é nem seu nem meu, mas da própria criança - e desejando-lhe que fosse com Deus, foi para sua casa e bateu na porta.
Quando sua mulher abriu a porta e viu que o marido voltara para casa a salvo, ela jogou os braços em torno do pescoço dele e o beijou, tirou-lhe das costas o feixe de lenha de lenha, limpado a neve de suas botas e pediu-lhe que entrasse.
Porém ele disse:
- Encontrei uma coisa na floresta e trouxe para que você cuide dela - e não arredou pé da soleira da porta.
- O que é? - exclamou ela. - Mostre-me, pois a casa está vazia e temos necessidade de muitas coisas.
E ele, atirando o manto para as costas mostrou-lhe a criança adormecida.
- Ai, marido! - murmurou ela. - Será que já não temos bastante filhos, e você ainda precisa trazer um enjeitadinho para nossa lareira? Quem sabe se ele não pode trazer má sorte? Quem zelará por nós? E quem nos alimentará?
- - Ora, Deus cuida até dos pardais, e os alimenta - respondeu ele.
- - E os pardais não morrem de fome no inverno? - perguntou-lhe a mulher. - E não é inverno agora? - e o marido não respondeu nada, mas não arredou o pé da soleira da porta. Um vento cortante entrou pela porta aberta fazendo a mulher tremer. Ela teve um arrepio e disse:
- Por que não fecha essa porta? O vento que entra está gelado, e eu estou com frio.
- Na casa em que o coração é duro não é sempre gelado o vento? - perguntou ele.
A mulher não respondeu nada, mas chegou mais perto do fogo.
Depois de algum tempo ela olhou para ele, como os olhos marejados de lágrimas, e ele logo entrou e colocou a criança nos braços dela; ela a beijou, colocando-a na caminha onde estava deitada o caçula do casal. Na manhã seguinte, o Lenhador pegou o curioso manto dourado e colocou-o em uma grande arca; também guardou um grande fio de contas de âmbar que estava no pescoço da criança.
E assim o Filho-da-Estrela foi criado com os filhos do Lenhador, sentando-se à mesma que eles, sendo seu companheiro de brincadeiras.
A cada ano ele ficava mais bonito, de modo que todos os que moravam na aldeia ficavam maravilhados, pois enquanto os outros eram morenos de cabelos negros, ele era branco e delicado como marfim lavrado, e seus cachos pareciam pétalas de junquilhos. Seus lábios também pareciam pétalas de alguma flor rubra, e seus olhos eram como violetas que nascem junto ao regato de água pura, e seu corpo era como o narciso que cresce no campo onde não chega a foice.
Porém essa beleza o fez mau, pois tornou-o orgulhoso, cruel e egoísta. Os filhos do Lenhador e as outras crianças da aldeia ele desprezava, dizendo que eram de pais humildes, enquanto ele era nobre, já que nascera de um Estrela; e por isso dizia-se amo de todos eles, tratando-os como seus servos. Não tinha piedade para com os pobres, ou os que eram cegos, aleijados, ou de algum modo deficientes, antes atirando pedras neles para espantá-los em direção à estrada , dizendo-lhe que fossem mendigar seu pão em outra parte. De modo que ninguém, a não ser os bandidos, costumavam vir à aldeia para pedir esmolas. Ele parecia, na verdade, enamorado da beleza, debochando dos fracos e feios, menosprezando-os de todo modo. Mas amava a si mesmo, e no verão, quando não havia vento, ficava deitado junto ao poço do pomar do padre, olhando par o fundo a fim de ver seu próprio roso, rindo do prazer que sentia em ser tão belo.
Muitas vezes o Lenhador e sua mulher o repreenderam dizendo:
- Nós não o tratamos como você trata os outros que estão desamparados e não têm quem o socorra. Por que razão é tão cruel para com todos aqueles que precisam de piedade?
Mas o Filho-da-Estrela não dava atenção às suas palavras, e franzindo a testa e fazendo um muxoxo, voltava para a companhia dos outros meninos, para ser o chefe. Seus companheiros o seguiam, pois ele era lindo, rápido na corrida, sabia dançar, tocar flauta e fazer música. Onde quer que o Filho-da-Estrela os levasse, eles o seguiam, e o que quer que o Filho-da-Estrela lhes mandassem fazer, eles faziam. Quando ele furava com um junco pontudo os olhos da toupeira, eles riam; e quando ele atirava pedras em algum leproso, eles também riam. Em todas as coisas era ele quem os guiava, e seus corações foram ficando tão duros quanto o dele.
- Olhem! Lá está sentada uma mendiga imunda debaixo daquela linda castanheira, com suas folhas verdes. Venham, vamos expulsá-la daqui, pois é feia e mal-enjambrada.
Então ele se aproximou, atirando-lhe umas pedras e caçoou dela; ela ficou apavorada, mas nem por um instante tirou dele o seu olhar. Quando o Lenhador, que estava cortando lenha ali por perto, viu o que o Filho-da-Estrela estava fazendo, veio correndo e repreendeu-lhe, dizendo:
- Você tem mesmo um coração de pedra e não sabe o que é piedade, pois que mal lhe fez essa pobre mulher para que você a trate desse modo?
O Filho-da-Estrela ficou rubro de raiva, bateu com o pé no chão e disse:
- Quem é você para questionar o que eu faço? Eu não sou seu filho para ter de obedecê-lo.
- É verdade - respondeu o Lenhador -, mas eu tive pena de você quando o encontrei na florestas.
Quando a mendiga ouviu essas palavras, deu um grito e caiu desmaiada. O Lenhador carregou-a para sua casa, sua mulher cuidou dela, e quando ela voltou a si do desmaio deles puseram comida e bebida na frente dela e disseram que se reconfortasse.
Sem querer comer nem beber, disse ela ao Lenhador:
- O senhor não disse que a criança foi achada na floresta? E não faz hoje exatamente dez anos?
Então disse o Lenhador:
- Sim, foi na floresta que o encontrei, e faz hoje exatamente dez anos.
- E que sinais encontrou com ele? - gritou ele. - Não trazia ele no pescoço um colar de âmbar?
Não estava ele enrolado em manta de tecido de ouro bordado com estrelas?
- É verdade - respondeu o Lenhador -, foi exatamente assim como disse - e, pegando o colar e a manta na arca, mostrou-os a ela.
- Ele é meu filhinho que eu perdi na floresta. Peço-lhe que mande logo chamá-lo, pois eu tenho
andado por todo o mundo à procura dele.
Então o Lenhador e sua mulher saíram e chamaram o Filho-da-Estrela dizendo-lhe:
- Entre em casa, e lá há de encontrar sua mãe, que o espera.
Ele entrou correndo, espantado e muito alegre. Porém ao ver quem esperava lá dentro, ele riu com
desdém dizendo: - Bem, aonde esta minha mãe? Pois aqui não vejo ninguém se não essa mendiga.
E a mulher respondeu-lhe.
- Sou eu a sua mãe.
- Esta louca, como pode dizer uma coisa dessas - gritou o Filho-da-Estrela com raiva. - Eu não sou filho seu, pois você não passa de uma mendiga. É muito feia e andrajosa, portanto, sai já daqui, e não me deixe tornar a ver sua cara horrenda.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
O FILHO DA ESTRELA
A DONZELA E O FANTASMA
A DONZELA E O FANTASMA
CAPÍTULO I
Quando mister Hiram B. Otis, o Embaixador americano, adquiriu o Parque Canterville, não faltou gente a adverti-lo de que cometia uma loucura, porque na habitação apareciam, indubitavelmente, almas do outro mundo. Na verdade, o próprio lorde Canterville, cujo caracter era dos mais exigentes em escrúpulos, supusera do seu dever sublinhar o facto, chegado o momento de discutirem as condições do negócio.
- Até nós mesmos tínhamos já muito pouca vontade de residir aqui - disse lorde Canterville - desde que a minha tia-avó, a duquesa donatária de Bolton, desmaiou de terror (ela nunca pôde restabelecer-se desse abalo moral) quando as mãos de um esqueleto lhe assentaram nas espáduas, numa ocasião em que se vestia para o jantar. Devo igualmente dizer-lhe, mr. Otis, que o fantasma tem sido visto por muitos membros ainda vivos da minha família, assim como pelo cura da paróquia, o Reverendo Augustus Dampier, agregado do King's College, em Cambridge. Depois do desgraçado acidente sucedido à duquesa nenhum dos nossos criados novos quis manter-se ao serviço, e lady Canterville raramente conseguia conciliar o sono durante a noite por causa dos misteriosos ruídos vindos do corredor e da biblioteca.
- Lorde Canterville, - respondeu o Embaixador - eu sou comprador da propriedade e do fantasma pelo valor que lhes seja atribuído. Venho de um país moderno em que se tem tudo quanto o dinheiro pode obter. Não é certo que a nossa atrevida mocidade revoluciona o Velho Mundo? Não vos arrebatam as melhores actrizes e prime donne? Se existisse um fantasma na Europa, dentro em pouco o teríamos lá, estou convicto disso; ele seria exposto num dos nossos museus ou exibido nas ruas.
- Pois muito receio que o fantasma ainda, de facto, exista - disse, sorrindo, lorde Canterville. - Pode ser que haja resistido às propostas dos vossos arrojados empresários. É bem conhecido desde há três séculos, precisamente a partir do ano de 1584, e nunca deixou de fazer a sua aparição em vésperas do falecimento de cada pessoa da nossa família.
- Oh! em todas as famílias o médico faz exactamente o mesmo, lorde Canterville. Vamos, fantasmas, é coisa que não há. Não creio que as leis da natureza abram excepção a favor da aristocracia inglesa.
- Os senhores, na América, são, não há dúvida, muito naturais - comentou lorde Canterville, sem bem compreender a última observação de mr. Otis - e, se lhe é indiferente ter um fantasma de portas a dentro, estamos entendidos.
Passadas umas semanas a transacção estava concluída, e, já quase no termo da época, o Embaixador e a família foram instalar-se no Parque Canterville.
Mistress Otis, em solteira, miss Lucrécia R. Tappan, de West 53 rd. Street, havia sido célebre em Nova-Iorque pela sua beleza. Era agora mulher de meia idade, muito agradável, com belos olhos e soberbo perfil. Muitas americanas, ao abandonarem o país natal, dão-se ares de mulheres atingidas por um mal incurável, imaginando ser essa uma das formas da subtileza europeia; mas mrs. Otis não caíra nunca em semelhante erro. Desfrutava uma compleição invejável e possuía maravilhoso equilíbrio animal. Em boa verdade e sob numerosos aspectos, era muito inglesa e oferecia excelente exemplo de que a Inglaterra e a América não têm hoje nada que as distinga uma da outra, salvo, bem entendido, a linguagem.
O filho primogénito, a quem, num impulso de patriotismo que ele jamais deixara de lamentar, os pais haviam posto o nome de Washington, era um rapaz de cabelos louros e muito bem encarado; parecia integralmente dotado para entrar na diplomacia americana, pois levava de vencida os Alemães, três estações a fio no casino de Newport. A reputação de exímio dançarino que havia conquistado precedera mesmo a sua chegada a Londres. As gardénias e o pariato eram as únicas fraquezas do seu espírito; abstraindo de isso, mostrava ter muito bom-senso.
Miss Virgínia E. Otis era uma rapariguinha de quinze anos, graciosa e ágil como corça recém-nascida e cujos olhos rasgados e azuis reflectiam uma bela franqueza. Era uma admirável amazona. Certo dia batera, em corrida, o velho lorde Bilton, dando duas voltas ao parque em cima do seu poltro e ganhando por comprimento e meio, precisamente em frente da estátua de Aquiles, isto com grande enlevo do jovem duque de Cheshire. O duque logo nesse instante tinha pedido a mão dela, e, remetido nessa mesma tarde para o colégio pelos encarregados da sua educação, regressara a Eton¹ derramando lágrimas torrenciais.
A seguir a Virgínia contavam-se os gémeos, correntemente designados por «os condenados ao açoite». Eram ambos adoráveis rapazinhos e, com o digno Embaixador, os únicos verdadeiros republicanos da família.
Como o Parque Canterville se encontra a sete milhas de Ascot, a estação ferroviária mais próxima, mr. Otis telegrafara no sentido de os irem buscar de carruagem; e, cheios de alegria, puseram-se todos a caminho.
Era por uma linda meia tarde de Julho, em que o aroma dos pinheiros embalsamava o ar. De quando em quando ouviam um pombo bravo arrulhar docemente, ou enxergavam, escondido entre os rumorosos fetos, o brilhante peitilho de plumagem de um faisão. À sua passagem, pequenos esquilos, no seio da rama das faias, ficavam-se a olhá-los, e, alcançado a cauda branca, os coelhos fugiam a bom fugir através dos silvados ou galgavam os cômoros recobertos de musgo.
Todavia, na ocasião em que se entranhavam na alameda do Parque Canterville o céu cobriu-se subitamente de nuvens, uma calma estranha pareceu envolver a atmosfera, um bando de gralhas passou silenciosamente por cima deles e, antes que houvessem atingido a casa, começaram a cair grossas gotas de chuva.
Uma mulher já idosa acolheu-os no alto dos degraus. A maneira como se apresentava era irrepreensível. Envergava um vestido de seda preta, avental branco e touca desta mesma cor. Era mrs. Umney, a governanta. Mrs. Otis, a instâncias de lady Canterville, consentira em conservá-la ao seu serviço. Quando puseram pé em terra, ela fez a cada um dos seus novos amos uma rasgada mesura e disse, com solenidade já desusada:
- Desejo que sejam bem-vindos ao Parque Canterville.
Seguiram-na e, depois de terem atravessado um belo átrio no estilo Tudor, entraram na biblioteca, sala de grande extensão, de tecto baixo e ao fundo da qual se via uma ampla janela com vitrais. Fora aí que se preparara o chá, e, após terem-se despojado das vestes de viagem, sentaram-se e puseram-se a olhar em volta, enquanto mrs. Umney os servia.
De súbito, mrs. Otis descobriu no soalho, nas peças de madeira embutidas, perto do fogão, uma mancha de tom vermelho escuro, e, longe de suspeitar o que aquilo significava, disse a mrs. Umney:
- Estou em crer que caiu e alastrou ali qualquer coisa.
- Sim, minha senhora, - respondeu em voz baixa a antiga governanta - é sangue.
- Mas é horrível! - exclamou mrs. Otis. - Não gosto nada de ver manchas de sangue nos salões. É necessário fazer desaparecer isso imediatamente!
A velhota sorriu e informou, na mesma voz baixa e misteriosa:
- É o sangue de lady Eleanor de Canterville, assassinada precisamente neste sítio pelo marido, sir Simon de Canterville, em 1575. Sir Simon sobreviveu-lhe nove anos e desapareceu de súbito, em circunstâncias muito estranhas. O corpo dele nunca se encontrou, mas o seu espírito culposo vagueia ainda por esta casa. A mancha de sangue provocou sempre o pasmo dos visitantes e dos turistas. De resto, não se pode fazer desaparecer.
- É absurdo! - exclamou Washington Otis -. O Pinkerton, o rei dos sabões para tirar nódoas, fá-lo-á desaparecer num abrir e fechar de olhos.
E antes que a governanta, apavorada, pudesse intervir, Washington, pondo-se de joelhos, esfregava vigorosamente o parquete com um rolo de um pauzinho que tinha parecenças com cosmético negro.
Instantes depois a mancha desaparecera por completo.
- Eu sabia que o Pinkerton dava resultado! - proclamou o rapaz relanceando um olhar pela família, toda ela em atitude admirativa.
Mas, mal acabara de pronunciar aquelas palavras, iluminou por inteiro o sombrio compartimento um terrível relâmpago e um estrondoso ribombo de trovão fê-los erguer bruscamente, ao passo que mrs. Umney perdia os sentidos.
- Que monstruoso clima! - proferiu com serenidade o Ministro americano, acendendo um charuto. - Este vetusto país é, suponho, tão excessivamente povoado que não há bom tempo que chegue para todos os seus habitantes. Foi sempre opinião minha que a emigração era a solução única para a Inglaterra.
- Meu querido Hiram - gritou mrs. Otis - que havemos de fazer de uma mulher que perde assim os sentidos?
- Suspender-lhe-emos o ordenado quando tal suceda, de sorte que acabará por renunciar aos desmaios.
Mrs. Umney não deixou de voltar a si dentro em breve. Estava porém, indubitavelmente, muito comovida. Com ar grave, preveniu mrs. Otis de que não tardariam a registar-se acontecimentos perturbadores.
- Tenho visto com os meus próprios olhos - asseverou ela - coisas de pôr os cabelos em pé, e durante noites sobre noites não tenho podido pegar no sono, por causa do que de terrível se passa aqui.
Mr. Otis e a esposa afirmaram à boa mulher que não tinham medo de fantasmas, e depois de ter impetrado as bênçãos da Providência para os seus novos amos e procedido de jeito a obter aumento de salário, a velha governanta recolheu ao seu quarto coxeando levemente.
CAPÍTULO I
Quando mister Hiram B. Otis, o Embaixador americano, adquiriu o Parque Canterville, não faltou gente a adverti-lo de que cometia uma loucura, porque na habitação apareciam, indubitavelmente, almas do outro mundo. Na verdade, o próprio lorde Canterville, cujo caracter era dos mais exigentes em escrúpulos, supusera do seu dever sublinhar o facto, chegado o momento de discutirem as condições do negócio.
- Até nós mesmos tínhamos já muito pouca vontade de residir aqui - disse lorde Canterville - desde que a minha tia-avó, a duquesa donatária de Bolton, desmaiou de terror (ela nunca pôde restabelecer-se desse abalo moral) quando as mãos de um esqueleto lhe assentaram nas espáduas, numa ocasião em que se vestia para o jantar. Devo igualmente dizer-lhe, mr. Otis, que o fantasma tem sido visto por muitos membros ainda vivos da minha família, assim como pelo cura da paróquia, o Reverendo Augustus Dampier, agregado do King's College, em Cambridge. Depois do desgraçado acidente sucedido à duquesa nenhum dos nossos criados novos quis manter-se ao serviço, e lady Canterville raramente conseguia conciliar o sono durante a noite por causa dos misteriosos ruídos vindos do corredor e da biblioteca.
- Lorde Canterville, - respondeu o Embaixador - eu sou comprador da propriedade e do fantasma pelo valor que lhes seja atribuído. Venho de um país moderno em que se tem tudo quanto o dinheiro pode obter. Não é certo que a nossa atrevida mocidade revoluciona o Velho Mundo? Não vos arrebatam as melhores actrizes e prime donne? Se existisse um fantasma na Europa, dentro em pouco o teríamos lá, estou convicto disso; ele seria exposto num dos nossos museus ou exibido nas ruas.
- Pois muito receio que o fantasma ainda, de facto, exista - disse, sorrindo, lorde Canterville. - Pode ser que haja resistido às propostas dos vossos arrojados empresários. É bem conhecido desde há três séculos, precisamente a partir do ano de 1584, e nunca deixou de fazer a sua aparição em vésperas do falecimento de cada pessoa da nossa família.
- Oh! em todas as famílias o médico faz exactamente o mesmo, lorde Canterville. Vamos, fantasmas, é coisa que não há. Não creio que as leis da natureza abram excepção a favor da aristocracia inglesa.
- Os senhores, na América, são, não há dúvida, muito naturais - comentou lorde Canterville, sem bem compreender a última observação de mr. Otis - e, se lhe é indiferente ter um fantasma de portas a dentro, estamos entendidos.
Passadas umas semanas a transacção estava concluída, e, já quase no termo da época, o Embaixador e a família foram instalar-se no Parque Canterville.
Mistress Otis, em solteira, miss Lucrécia R. Tappan, de West 53 rd. Street, havia sido célebre em Nova-Iorque pela sua beleza. Era agora mulher de meia idade, muito agradável, com belos olhos e soberbo perfil. Muitas americanas, ao abandonarem o país natal, dão-se ares de mulheres atingidas por um mal incurável, imaginando ser essa uma das formas da subtileza europeia; mas mrs. Otis não caíra nunca em semelhante erro. Desfrutava uma compleição invejável e possuía maravilhoso equilíbrio animal. Em boa verdade e sob numerosos aspectos, era muito inglesa e oferecia excelente exemplo de que a Inglaterra e a América não têm hoje nada que as distinga uma da outra, salvo, bem entendido, a linguagem.
O filho primogénito, a quem, num impulso de patriotismo que ele jamais deixara de lamentar, os pais haviam posto o nome de Washington, era um rapaz de cabelos louros e muito bem encarado; parecia integralmente dotado para entrar na diplomacia americana, pois levava de vencida os Alemães, três estações a fio no casino de Newport. A reputação de exímio dançarino que havia conquistado precedera mesmo a sua chegada a Londres. As gardénias e o pariato eram as únicas fraquezas do seu espírito; abstraindo de isso, mostrava ter muito bom-senso.
Miss Virgínia E. Otis era uma rapariguinha de quinze anos, graciosa e ágil como corça recém-nascida e cujos olhos rasgados e azuis reflectiam uma bela franqueza. Era uma admirável amazona. Certo dia batera, em corrida, o velho lorde Bilton, dando duas voltas ao parque em cima do seu poltro e ganhando por comprimento e meio, precisamente em frente da estátua de Aquiles, isto com grande enlevo do jovem duque de Cheshire. O duque logo nesse instante tinha pedido a mão dela, e, remetido nessa mesma tarde para o colégio pelos encarregados da sua educação, regressara a Eton¹ derramando lágrimas torrenciais.
A seguir a Virgínia contavam-se os gémeos, correntemente designados por «os condenados ao açoite». Eram ambos adoráveis rapazinhos e, com o digno Embaixador, os únicos verdadeiros republicanos da família.
Como o Parque Canterville se encontra a sete milhas de Ascot, a estação ferroviária mais próxima, mr. Otis telegrafara no sentido de os irem buscar de carruagem; e, cheios de alegria, puseram-se todos a caminho.
Era por uma linda meia tarde de Julho, em que o aroma dos pinheiros embalsamava o ar. De quando em quando ouviam um pombo bravo arrulhar docemente, ou enxergavam, escondido entre os rumorosos fetos, o brilhante peitilho de plumagem de um faisão. À sua passagem, pequenos esquilos, no seio da rama das faias, ficavam-se a olhá-los, e, alcançado a cauda branca, os coelhos fugiam a bom fugir através dos silvados ou galgavam os cômoros recobertos de musgo.
Todavia, na ocasião em que se entranhavam na alameda do Parque Canterville o céu cobriu-se subitamente de nuvens, uma calma estranha pareceu envolver a atmosfera, um bando de gralhas passou silenciosamente por cima deles e, antes que houvessem atingido a casa, começaram a cair grossas gotas de chuva.
Uma mulher já idosa acolheu-os no alto dos degraus. A maneira como se apresentava era irrepreensível. Envergava um vestido de seda preta, avental branco e touca desta mesma cor. Era mrs. Umney, a governanta. Mrs. Otis, a instâncias de lady Canterville, consentira em conservá-la ao seu serviço. Quando puseram pé em terra, ela fez a cada um dos seus novos amos uma rasgada mesura e disse, com solenidade já desusada:
- Desejo que sejam bem-vindos ao Parque Canterville.
Seguiram-na e, depois de terem atravessado um belo átrio no estilo Tudor, entraram na biblioteca, sala de grande extensão, de tecto baixo e ao fundo da qual se via uma ampla janela com vitrais. Fora aí que se preparara o chá, e, após terem-se despojado das vestes de viagem, sentaram-se e puseram-se a olhar em volta, enquanto mrs. Umney os servia.
De súbito, mrs. Otis descobriu no soalho, nas peças de madeira embutidas, perto do fogão, uma mancha de tom vermelho escuro, e, longe de suspeitar o que aquilo significava, disse a mrs. Umney:
- Estou em crer que caiu e alastrou ali qualquer coisa.
- Sim, minha senhora, - respondeu em voz baixa a antiga governanta - é sangue.
- Mas é horrível! - exclamou mrs. Otis. - Não gosto nada de ver manchas de sangue nos salões. É necessário fazer desaparecer isso imediatamente!
A velhota sorriu e informou, na mesma voz baixa e misteriosa:
- É o sangue de lady Eleanor de Canterville, assassinada precisamente neste sítio pelo marido, sir Simon de Canterville, em 1575. Sir Simon sobreviveu-lhe nove anos e desapareceu de súbito, em circunstâncias muito estranhas. O corpo dele nunca se encontrou, mas o seu espírito culposo vagueia ainda por esta casa. A mancha de sangue provocou sempre o pasmo dos visitantes e dos turistas. De resto, não se pode fazer desaparecer.
- É absurdo! - exclamou Washington Otis -. O Pinkerton, o rei dos sabões para tirar nódoas, fá-lo-á desaparecer num abrir e fechar de olhos.
E antes que a governanta, apavorada, pudesse intervir, Washington, pondo-se de joelhos, esfregava vigorosamente o parquete com um rolo de um pauzinho que tinha parecenças com cosmético negro.
Instantes depois a mancha desaparecera por completo.
- Eu sabia que o Pinkerton dava resultado! - proclamou o rapaz relanceando um olhar pela família, toda ela em atitude admirativa.
Mas, mal acabara de pronunciar aquelas palavras, iluminou por inteiro o sombrio compartimento um terrível relâmpago e um estrondoso ribombo de trovão fê-los erguer bruscamente, ao passo que mrs. Umney perdia os sentidos.
- Que monstruoso clima! - proferiu com serenidade o Ministro americano, acendendo um charuto. - Este vetusto país é, suponho, tão excessivamente povoado que não há bom tempo que chegue para todos os seus habitantes. Foi sempre opinião minha que a emigração era a solução única para a Inglaterra.
- Meu querido Hiram - gritou mrs. Otis - que havemos de fazer de uma mulher que perde assim os sentidos?
- Suspender-lhe-emos o ordenado quando tal suceda, de sorte que acabará por renunciar aos desmaios.
Mrs. Umney não deixou de voltar a si dentro em breve. Estava porém, indubitavelmente, muito comovida. Com ar grave, preveniu mrs. Otis de que não tardariam a registar-se acontecimentos perturbadores.
- Tenho visto com os meus próprios olhos - asseverou ela - coisas de pôr os cabelos em pé, e durante noites sobre noites não tenho podido pegar no sono, por causa do que de terrível se passa aqui.
Mr. Otis e a esposa afirmaram à boa mulher que não tinham medo de fantasmas, e depois de ter impetrado as bênçãos da Providência para os seus novos amos e procedido de jeito a obter aumento de salário, a velha governanta recolheu ao seu quarto coxeando levemente.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
A DONZELA E O FANTASMA
A DONZELA E O FANTASMA - CAPÍTULO II
CAPÍTULO II
Naquela noite a tempestade desencadeou-se com violência, mas nada aconteceu de particular. Todavia, na manhã seguinte, ao descer para o pequeno almoço, os Otis verificaram que a horrível mancha de sangue reaparecera.
- Seguramente, a culpa não é do sabão para tirar nódoas - disse Washington - pois sempre o empreguei com êxito. Isto deve ser o fantasma.
E o rapaz conseguiu fazer desaparecer a mancha pela segunda vez; no dia imediato, porém, ela estava de novo patente. No outro dia a seguir, a mancha lá se via, se bem que a biblioteca tivesse sido, na véspera à noite, fechada por mr. Otis em pessoa, que levara a chave para o seu quarto.
O interesse de toda a família encontrava-se agora desperto. Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido excessivamente dogmático ao negar a existência de fantasmas. Exprimiu o propósito de pedir a sua inscrição na Sociedade de Estudos Psíquicos, e Washington enviou uma extensa carta aos senhores Myers e Podmore, acerca da «Persistência de manchas de sangue após o crime».
Nessa noite todas as dúvidas a respeito da existência objectiva de espectro se dissiparam para sempre. O dia tinha estado quente soalheiro, e quando a proximidade da noite trouxe alguma frescura a família completa partiu para um passeio de carruagem. Não regressaram todos senão às nove horas e tomaram em seguida uma ligeira ceia. De modo nenhum a conversa incluiu a menor alusão sequer a fantasmas, de maneira que se não poderiam pôr em causa essas preliminares condições de expectativa e auto-sugestão que tantas vezes precedem a aparição dos fenómenos psíquicos, Como mr. Otis mo contou mais tarde, a discussão apegou-se aos triviais assuntos que constituem a conversação dos americanos cultos da melhor sociedade: a superioridade imensa de miss Fanny Davenport, como actriz, sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho verde, bolos de trigo mouro e polenda, mesmo nos melhores estabelecimentos ingleses; a importância de Boston no desenvolvimento do espírito universal; as vantagens do sistema de registo das bagagens; a suavidade da pronúncia das palavras em uso em Nova-Iorque comparada com o pronúncia arrastada de Londres. Nenhuma menção de coisas sobrenaturais. Nenhuma alusão a sir Simon de Canterville. Dadas as onze horas, a família recolheu-se e, às onze e meia, todas as luzes estavam apagadas.
Decorrida uma porção de tempo, mr. Otis foi despertado por um ruído singular que vinha do corredor, perto do seu quarto. Dir-se-ia um tinido de metais que se entrechocam, e o ruído parecia de cada vez mais próximo. Levantou-se imediatamente, acendeu um fósforo e viu o relógio. Era uma hora em ponto. Muito calmo, mr. Otis tateou o pulso. Não se tratava de febre. O ruído estranho continuava e, dentro em pouco, mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou as pantufas, tirou do seu estojo de toilette uma garrafinha oblonga e abriu a porta.
Diante de si, à pálida claridade do luar, via um horrendo ancião. Os olhos dele, que se assemelhavam a carvões em brasa, lançavam clarões vermelhos. Caíam-lhe sobre os ombros os cabelos compridos cor de cinza, em madeixas emaranhadas. A roupa que vestia, de corte antigo, estava cheia de nódoas e em farrapos. Pesadas cadeias, todas cheias de ferrugem, pendiam-lhe dos pulsos e dos tornozelos.
- Meu caro senhor, - disse mr. Otis - perdoe-me importuná-lo, mas é absolutamente necessário que unte essas correntes. Pensando na sua pessoa, peguei neste frascozinho de lubrificante. Dizem ser muito eficaz logo à primeira vez que se aplique. No prospecto junto achará muitos atestados dos mais eminentes sábios do país. Vou deixá-lo aqui, o frasco, junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras feliz em arranjar-lhe outro se tiver precisão dele.
Ao dizer isto, o Ministro dos Estados-Unidos colocou o frasco sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fechando a porta, voltou a meter-se na cama.
O fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio de uma indignação bem natural; depois, arremessando violentamente o frasco ao chão encerado, sumiu-se ao longo do corredor a soltar grunhidos cavernosos e projectando em redor terrificantes clarões verdes.
Ao atingir, porém, o alto da grande escadaria de carvalho, abriu-se bruscamente uma porta, apareceram dois pequenos vultos vestidos de branco, e um rotundo travesseiro passou-lhe, zumbindo, rente à cabeça! Decididamente, não havia tempo a perder e, adoptando como rápido meio de salvação a quarta dimensão do espaço, esvaiu-se através do revestimento de madeira das paredes, após o que a habitação recuperou a sua calma.
Tendo alcançado uma alcouvazinha secreta situada na ala esquerda do edifício, apoiou-se, para retomar fôlego, num raio de luar e pôs-se a reflectir no que lhe acabava de suceder. Em toda a sua carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca fora insultado tão grosseiramente. Recordou o estado de terror em que lançara a duquesa donatária quando ela se contemplava ao espelho, taful de diamantes e rendas; as quatro criadas que haviam tido uma crise de nervos muito simplesmente porque ele, rindo escarninhamente, as espreitara através dos cortinados de um dos quartos de hóspedes; o cura da paróquia, cuja vela apagara com um sopro quando ele saía uma noite da biblioteca, onde se retardara um pouco mais, e que depois, vítima de acidentes nervosos, estivera a ser tratado por sir William Gul; a velha senhora de Tremouillac, a qual, tendo acordado de manhã muito cedo e visto um esqueleto sentado numa poltrona, junto do fogão, imerso na leitura do seu diário íntimo, foi obrigada a conservar-se de cama durante seis semanas, presa de uma febre cerebral. A duquesa, logo que se vira curada, reconciliara-se com a Igreja, quebrando todas as relações com o senhor de Voltaire esse céptico notório.
O fantasma lembrou-se também da terrível noite em que esse patife do lorde Canterville foi encontrado no seu gabinete de vestir meio sufocado, com o valete de ouros no fundo da garganta; precisamente antes de morrer confessara ter trapaceado ao jogo por meio dessa carta e roubado a Charles James Fox, em casa do Crockford, cinquenta mil libras esterlinas. O fantasma, jurava ele, obrigara-o a engolir a carta.
O fantasma de Canterville revia, em pensamento, as suas mais belas façanhas. Evocou o caso do mordomo que, na copa, se suicidara com um tiro de revólver por ter visto uma mão verde bater nos vidros; depois, e da bela lady Stufield, que se intimou a trazer sempre em volta do pescoço uma fita de veludo negro, para ocultar a marca que cinco dedos de fogo haviam imprimindo na sua pele branca de leite, e que acabara por se afogar no lago das carpas, ao fim da alameda do Rei.
Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o fantasma passou em revista as suas realizações mais famosas. E com um sorriso cheio de azedume recordou-se da sua última aparição como «Ruben, o Vermelho, ou o Bebé Estrangulado», da sua estreia no papel de «Gibéon, o Vampiro de Bexley Moor», e da agitação que provocara, numa encantadora tarde de Junho, jogando muito simplesmente o chinquilho com a sua própria ossada, em cima da relva do campo de ténis.
E, ao cabo de todos estes altos feitos, eis que uns miseráveis americanos modernos lhe vinham oferecer lubrificante e arremessar-lhe travesseiros à cabeça! Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma nenhum fora tratado daquela maneira. Decidiu, pois, vingar-se; e até romper a aurora permaneceu em atitude de profunda meditação.
Naquela noite a tempestade desencadeou-se com violência, mas nada aconteceu de particular. Todavia, na manhã seguinte, ao descer para o pequeno almoço, os Otis verificaram que a horrível mancha de sangue reaparecera.
- Seguramente, a culpa não é do sabão para tirar nódoas - disse Washington - pois sempre o empreguei com êxito. Isto deve ser o fantasma.
E o rapaz conseguiu fazer desaparecer a mancha pela segunda vez; no dia imediato, porém, ela estava de novo patente. No outro dia a seguir, a mancha lá se via, se bem que a biblioteca tivesse sido, na véspera à noite, fechada por mr. Otis em pessoa, que levara a chave para o seu quarto.
O interesse de toda a família encontrava-se agora desperto. Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido excessivamente dogmático ao negar a existência de fantasmas. Exprimiu o propósito de pedir a sua inscrição na Sociedade de Estudos Psíquicos, e Washington enviou uma extensa carta aos senhores Myers e Podmore, acerca da «Persistência de manchas de sangue após o crime».
Nessa noite todas as dúvidas a respeito da existência objectiva de espectro se dissiparam para sempre. O dia tinha estado quente soalheiro, e quando a proximidade da noite trouxe alguma frescura a família completa partiu para um passeio de carruagem. Não regressaram todos senão às nove horas e tomaram em seguida uma ligeira ceia. De modo nenhum a conversa incluiu a menor alusão sequer a fantasmas, de maneira que se não poderiam pôr em causa essas preliminares condições de expectativa e auto-sugestão que tantas vezes precedem a aparição dos fenómenos psíquicos, Como mr. Otis mo contou mais tarde, a discussão apegou-se aos triviais assuntos que constituem a conversação dos americanos cultos da melhor sociedade: a superioridade imensa de miss Fanny Davenport, como actriz, sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho verde, bolos de trigo mouro e polenda, mesmo nos melhores estabelecimentos ingleses; a importância de Boston no desenvolvimento do espírito universal; as vantagens do sistema de registo das bagagens; a suavidade da pronúncia das palavras em uso em Nova-Iorque comparada com o pronúncia arrastada de Londres. Nenhuma menção de coisas sobrenaturais. Nenhuma alusão a sir Simon de Canterville. Dadas as onze horas, a família recolheu-se e, às onze e meia, todas as luzes estavam apagadas.
Decorrida uma porção de tempo, mr. Otis foi despertado por um ruído singular que vinha do corredor, perto do seu quarto. Dir-se-ia um tinido de metais que se entrechocam, e o ruído parecia de cada vez mais próximo. Levantou-se imediatamente, acendeu um fósforo e viu o relógio. Era uma hora em ponto. Muito calmo, mr. Otis tateou o pulso. Não se tratava de febre. O ruído estranho continuava e, dentro em pouco, mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou as pantufas, tirou do seu estojo de toilette uma garrafinha oblonga e abriu a porta.
Diante de si, à pálida claridade do luar, via um horrendo ancião. Os olhos dele, que se assemelhavam a carvões em brasa, lançavam clarões vermelhos. Caíam-lhe sobre os ombros os cabelos compridos cor de cinza, em madeixas emaranhadas. A roupa que vestia, de corte antigo, estava cheia de nódoas e em farrapos. Pesadas cadeias, todas cheias de ferrugem, pendiam-lhe dos pulsos e dos tornozelos.
- Meu caro senhor, - disse mr. Otis - perdoe-me importuná-lo, mas é absolutamente necessário que unte essas correntes. Pensando na sua pessoa, peguei neste frascozinho de lubrificante. Dizem ser muito eficaz logo à primeira vez que se aplique. No prospecto junto achará muitos atestados dos mais eminentes sábios do país. Vou deixá-lo aqui, o frasco, junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras feliz em arranjar-lhe outro se tiver precisão dele.
Ao dizer isto, o Ministro dos Estados-Unidos colocou o frasco sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fechando a porta, voltou a meter-se na cama.
O fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio de uma indignação bem natural; depois, arremessando violentamente o frasco ao chão encerado, sumiu-se ao longo do corredor a soltar grunhidos cavernosos e projectando em redor terrificantes clarões verdes.
Ao atingir, porém, o alto da grande escadaria de carvalho, abriu-se bruscamente uma porta, apareceram dois pequenos vultos vestidos de branco, e um rotundo travesseiro passou-lhe, zumbindo, rente à cabeça! Decididamente, não havia tempo a perder e, adoptando como rápido meio de salvação a quarta dimensão do espaço, esvaiu-se através do revestimento de madeira das paredes, após o que a habitação recuperou a sua calma.
Tendo alcançado uma alcouvazinha secreta situada na ala esquerda do edifício, apoiou-se, para retomar fôlego, num raio de luar e pôs-se a reflectir no que lhe acabava de suceder. Em toda a sua carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca fora insultado tão grosseiramente. Recordou o estado de terror em que lançara a duquesa donatária quando ela se contemplava ao espelho, taful de diamantes e rendas; as quatro criadas que haviam tido uma crise de nervos muito simplesmente porque ele, rindo escarninhamente, as espreitara através dos cortinados de um dos quartos de hóspedes; o cura da paróquia, cuja vela apagara com um sopro quando ele saía uma noite da biblioteca, onde se retardara um pouco mais, e que depois, vítima de acidentes nervosos, estivera a ser tratado por sir William Gul; a velha senhora de Tremouillac, a qual, tendo acordado de manhã muito cedo e visto um esqueleto sentado numa poltrona, junto do fogão, imerso na leitura do seu diário íntimo, foi obrigada a conservar-se de cama durante seis semanas, presa de uma febre cerebral. A duquesa, logo que se vira curada, reconciliara-se com a Igreja, quebrando todas as relações com o senhor de Voltaire esse céptico notório.
O fantasma lembrou-se também da terrível noite em que esse patife do lorde Canterville foi encontrado no seu gabinete de vestir meio sufocado, com o valete de ouros no fundo da garganta; precisamente antes de morrer confessara ter trapaceado ao jogo por meio dessa carta e roubado a Charles James Fox, em casa do Crockford, cinquenta mil libras esterlinas. O fantasma, jurava ele, obrigara-o a engolir a carta.
O fantasma de Canterville revia, em pensamento, as suas mais belas façanhas. Evocou o caso do mordomo que, na copa, se suicidara com um tiro de revólver por ter visto uma mão verde bater nos vidros; depois, e da bela lady Stufield, que se intimou a trazer sempre em volta do pescoço uma fita de veludo negro, para ocultar a marca que cinco dedos de fogo haviam imprimindo na sua pele branca de leite, e que acabara por se afogar no lago das carpas, ao fim da alameda do Rei.
Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o fantasma passou em revista as suas realizações mais famosas. E com um sorriso cheio de azedume recordou-se da sua última aparição como «Ruben, o Vermelho, ou o Bebé Estrangulado», da sua estreia no papel de «Gibéon, o Vampiro de Bexley Moor», e da agitação que provocara, numa encantadora tarde de Junho, jogando muito simplesmente o chinquilho com a sua própria ossada, em cima da relva do campo de ténis.
E, ao cabo de todos estes altos feitos, eis que uns miseráveis americanos modernos lhe vinham oferecer lubrificante e arremessar-lhe travesseiros à cabeça! Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma nenhum fora tratado daquela maneira. Decidiu, pois, vingar-se; e até romper a aurora permaneceu em atitude de profunda meditação.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
A DONZELA E O FANTASMA
A DONZELA E O FANTASMA - CAPÍTULO III
CAPÍTULO III
Na manhã seguinte, durante o pequeno almoço, o fantasma constituiu o objecto de prolongada discussão. O Embaixador dos Estados-Unidos estava, como é natural, um pouco aborrecido por ver que a sua dádiva não tinha sido aceite.
- De modo nenhum tive a intenção de dirigir ao fantasma uma injúria pessoal, e, sendo certo que ele reside na casa há tantíssimo tempo, vocês devem confessar que é muito pouco delicado atirar-lhe travesseiros à cabeça...
Lamento ter de declarar que, perante esta justa advertência, os gémeos desataram às gargalhadas.
- Por outro lado - prosseguiu o ministro - se ele se recusa, teimosamente, a empregar o lubrificante, teremos de confiscar-lhe as cadeias. É impossível dormir, com um barulho assim no corredor!
Mas durante todo o resto da semana o fantasma não os incomodou absolutamente nada. A coisa única a excitar a atenção era o reaparecimento contínuo da mancha de sangue no parquete da biblioteca. E essa era uma estranha coisa, porque mr. Otis fechava a porta à chave todas as tardes e mandava correr bem as janelas. O facto de a mancha mudar tantas vezes de tom como um camaleão provocava igualmente numerosos comentários. Em determinadas manhãs, aparecia de um vermelho escuro, quase um vermelho indiano; no dia seguinte, era um rubro retinto; no outro dia, era um violeta sumptuoso; e até uma vez, quando os Otis todos desceram para as orações familiares, conforme os ritos cheios de simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal, verificaram que a mancha era de um verde-esmeralda esplendente. É bem de ver, estas mutações caleidoscópicas divertiam muito a família; e, todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respeito. A única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena Virgínia, que, por qualquer ignota razão, parecia sempre consternada ao ver a mancha de sangue e esteve pertíssimo de desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-esmeralda.
A segunda aparição do fantasma efectuou-se no Domingo à noite. Pouco tempo depois de se terem metido na cama, foram de súbito alarmados por um medonho estrondo vindo do vestíbulo. Descendo precipitadamente a escada, verificaram que uma grande e antiga armadura, despegada da sua peanha, fora projectada para o lajedo, enquanto o fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de alto espaldar e com uma expressão de angústia, esfregava os joelhos.
Os gémeos, que se tinham munido das suas zarabatanas, descarregaram imediatamente dois pequenos projécteis sobre o fantasma, com essa precisão de pontaria que só longos e sérios exercícios, tendo por alvo um professor de escrita, pode dar, enquanto o Ministro dos Estados-Unidos, mantendo-o sob a ameaça do seu revólver, lhe intimava, segundo a etiqueta, que pusesse as mãos ao alto.
O fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de raiva, e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando na sua passagem a vela de Washington Otis e deixando-os em escuridão completa.
Ao alcançar o cimo da escadaria o fantasma recobrou ânimo e decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos, cuja utilidade mais de uma vez havia experimentado. Contava-se que aquilo fizera embranquecer, no decurso de uma noite apenas, a cabeleira postiça de lorde Raker, e que provocara a demissão de três das governantas francesas de lady Canterville antes de findo o seu primeiro mês de serviço. Por conseguinte, riu com o seu riso mais horroroso, até o velho tecto abobadado repercutir com o estrépito desse riso infernal. Mas, mal extinto o último eco, abriu-se uma porta e mrs. Otis apareceu embrulhada num roupão azul pálido.
- Receio que o senhor não esteja bem de saúde. Trago-lhe aqui um frasco de tintura do Doutor Dobell. Se é uma indigestão, verá que o remédio é excelente.
O fantasma fixou-a, cheio de fúria, e esteve prestes a transformar-se num canzarrão negro, realização que lhe tinha valido um justo renome e ao qual o médico da família atribuía sempre a idiotia incurável do tio de lorde Canterville, o nobre Thomas Horton. Mas um rumor de passos que se aproximavam fizeram-no hesitar no cruel projecto. Contentou-se em tornar-se levemente fosforescente, e esvaiu-se com um grunhido sepulcral no momento preciso em que os gémeos chegavam à altura em que se encontrava.
Tendo regressado ao seu quarto, num enorme abatimento, dentro em pouco apossou-se dele a mais violenta agitação. O desplante dos gémeos e o materialismo grosseiro de mrs. Otis eram, sem sombra de dúvida, extremamente aborrecidos; mas o que o consternava mais era não ter podido envergar a armadura. Acrisolara suas esperanças em que até mesmo uns americanos modernos não deixariam de perturbar-se à vista de um espectro com armadura guerreira, senão por inteligentes razões ao menos por respeito por Longfellow, seu poeta nacional, cujos versos graciosos e cheios de encanto o tinham ajudado mais de uma vez a passar o tempo durante a ausência dos Canterville. Para mais, era a sua própria armadura. Ostentara-a com grande êxito no torneio de Kenilworth e recebera os mais calorosos cumprimentos da Rainha-Virgem em pessoa. Mas quando quisera, agora, enfiar a armadura, fora de todo em todo esmagado pelo peso da enorme couraça e do elmo de aço, e caíra desamparadamente sobre o lajedo, esfolando a valer os dois joelhos e contundindo as articulações da mão direita.
Esteve doente durante muitos dias e não saiu do quarto senão para manter a nódoa de sangue. Todavia, com grandes cuidados, restabeleceu-se e resolveu fazer terceira tentativa para aterrorizar o Ministro dos Estados-Unidos e sua família. Escolheu a sexta-feira, 14 de Agosto, para a nova aparição, e ocupou a maior parte desse dia a passar em revista o seu guarda-roupa. Optou, por fim, por um chapéu de abas largas ornado de uma pluma vermelha, um sudário recortado nos punhos e no pescoço e uma adaga ferrugenta.
No decurso do serão surdiu uma violenta tempestade. O vento soprava tão forte que sacudia janelas e portas da velha moradia. Era exactamente este o tempo de que o fantasma gostava. Eis o plano em que assentara. Iria de manso e manso até o quarto de Washington Otis; junto do leito, soltaria gritos e enterraria três vezes a adaga na sua própria garganta, ao som de uma lânguida música. Alimentava uma razão de queixa especial contra Washington, por saber muito bem, como sabia, que era ele quem, com o seu sabão para tirar nódoas, fazia incessantemente desaparecer a famosa mancha de sangue dos Cantervilles. Após ter submetido o descuidado e audacioso rapaz a um estado de abjecto terror, dirigir-se-ia então ao quarto ocupado pelo Embaixador dos Estados-Unidos e sua mulher; pousaria na testa de mrs. Otis a mão cheia de visco, ao mesmo tempo que insinuaria ao ouvido do esposo, todo ele numa tremura, os horríveis segredos de além-túmulo.
Quanto à pequena Virgínia, ainda nada decidira. Era meiga e bonita e nunca o insultara. Alguns grunhidos roucos e profundos vindos de dentro do guarda-fato seriam, pensou, mais do que suficientes, e se por acaso eles a não despertassem poderia puxar com os dedos descarnados e trémulos o couvre-pied da rapariguinha.
Na parte concernente aos gémeos estava deveras decidido a dar-lhes uma lição. Naturalmente, a primeira coisa a fazer era sentar-se sobre o peito deles, de maneira a produzir a sufocante sensação do pesadelo; depois, ficando as suas camas tão juntinhas, surgiria de permeio sob a forma de um cadáver verde e gelado, até que os manos se pusessem paralíticos de medo; por último, despojando-se do sudário, rojar-se-ia em volta de todo o aposento com a sua ossada embranquecida, fazendo ao mesmo tempo girar as meninas dos olhos, numa imitação de «Daniel o Mudo, ou o Esqueleto do Suicida», papel no qual produzira grande efeito em muitíssimas ocasiões e a que atribuía a mesma importância que à sua famosa personagem de «Martinho, o Louco ou o Mistério Mascarado».
Às dez horas e meia percebeu que a família se ia deitar. Esteve um bocado de tempo perturbado pelas sonoras risadas dos gémeos, os quais, com a descuidada alegria de estudantes, certamente se divertiam antes de se enfiarem na cama. Mas às onze e um quarto tudo estava em sossego e, ao soar a meia-noite, ele partiu para a sua expedição.
O mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o corvo crocitava no cimo do velho teixo e o vento vagueava em volta da casa, gemendo como alma penada. Mas a família Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o cadenciado ressonar do Ministro dos Estados Unidos cobria o ruído do temporal. O fantasma esgueirou-se para fora da madeira das paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca murcha e cruel desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua escondeu-se por detrás de uma nuvem quando ele passou junto da grande janela ogival ornada de um brasão azul e ouro, que representava as suas próprias armas e as da sua esposa assassinada. Deslizava como uma sombra funesta e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs ouvir alguém a chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido de um cão subia da Granja Vermelha. Prosseguiu caminho, resmungando pragas do século dezasseis e brandindo de quando em quando a adaga corroída de ferrugem.
O fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que conduzia ao quarto do infortunado Washington. Parou um instante. O vento sacudia-lhe as madeixas compridas de cor de cinza e fazia ondular de maneira grotesca e fantástica o sudário de morto. O quadro inspirava indizível horror. O relógio soou então o quarto de hora. Compreendeu que tinha chegado o momento. Soltou, baixinho, uma risadinha de escárnio e transpôs a esquina do corredor. Mas, mal tinha dado aí um passo, logo recuou com um lamentoso gemido de terror e logo também ocultou nas suas mãos ossudas a face macilenta.
Diante de si erguia-se um horrível espectro, tão imóvel como uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho de um louco. A cabeça dele era calva e luzidia, a face redonda, gorda e branca. Um riso ignóbil parecia ter-lhe contorcido as feições numa expressão eterna de zombaria. Dos olhos escorriam-lhe clarões escarlates. A boca era um largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta, semelhante à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico. Um letreiro contendo uma inscrição em caracteres estranhos e antigos ornava-lhe o peito: sem dúvida, um certificado de infâmia, a narrativa de medonhas faltas, uma lista de crimes espantosos. Com a mão direita, brandia um gládio de aço brilhante.
Nunca tendo visto, até à data, nenhum fantasma, sentiu naturalmente um grande pavor. Lançou, rápido outro olhar ao terrível espectro e desatou a fugir para o seu quarto, tropeçando, ao seguir pelo corredor, no longo sudário que trazia. Por último, deixou cair a adaga ferrugenta dentro das grossas botas do Embaixador, onde o mordomo a foi encontrar no dia seguinte de manhã.
Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da estreita cama de lona e enterrou o rosto nos lençóis. Mas transcorrido um pedaço de tempo a antiga coragem dos Cantervilles recuperou os seus direitos. Decidiu ir falar com o outro fantasma, logo que nascesse o dia. E apenas a aurora prateou as colinas, voltou ao sítio onde havia, pela primeira vez, lançado os olhos sobre o formidável espectro, raciocinando que, no fim de contas, dois fantasmas valiam mais do que um, e que com a ajuda do seu novo colega talvez vencesse melhor os gémeos.
Mas quando ali se encontrou, no mesmo lugar, um horrível espectáculo feriu seus olhos. Era de todo evidente que acontecera qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desaparecera completamente das órbitas, o gládio brilhante escorregara-lhe da mão e o corp
o encostava-se à parede numa atitude de constrangimento e incómodo.
Precipitou-se para ele e tomou-o nos braços. Mas, com assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão; o corpo foi-se também abaixo, e percebeu que estreitava apenas um cortinado de cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo, uma machada de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz de compreender esta curiosa transformação, pegou no letreiro com pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras abomináveis:
O FANTASMA OTIS
é o único, autêntico e original
Desconfiai das falsificações!...
Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado uma partida! A característica expressão, dos Cantervilles perpassou-lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes e, levantando muito alto, acima da cabeça, as mãos descarnadas, jurou, segundo a fraseologia pitoresca da escola antiga, que, quando o galo fizesse ouvir mais duas vezes o seu alegre apelo, haviam de dar-se ali acontecimentos sangrentos e a morte deslizaria por aqueles lugares em silenciosos passos.
Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância, de uma granja coberta de telhas vermelhas, a voz de um galo. O fantasma soltou um prolongado e amargo riso e esperou. Hora após hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha, o galo não repetiu o canto. Por fim, às sete e meia, a chegada dos serviçais obrigou-o a abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu abortado plano. Consultou então muitas obras a que dedicava particular apreço e que tratavam da antiga cavalaria. Aí verificou que, de todas as vezes que tal juramento havia sido formulado, sempre o galo cantara segunda vez.
- Diabos levem aquele maldito volátil! - resmungou ele. - Ah! não me encontrar ainda no tempo em que, com minha intrépida lança, lhes trespassaria a gorja e em que o teria obrigado a cantar só para mim até perder o sopro!
Depois estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, em que permaneceu até o cerrar da noitinha.
Na manhã seguinte, durante o pequeno almoço, o fantasma constituiu o objecto de prolongada discussão. O Embaixador dos Estados-Unidos estava, como é natural, um pouco aborrecido por ver que a sua dádiva não tinha sido aceite.
- De modo nenhum tive a intenção de dirigir ao fantasma uma injúria pessoal, e, sendo certo que ele reside na casa há tantíssimo tempo, vocês devem confessar que é muito pouco delicado atirar-lhe travesseiros à cabeça...
Lamento ter de declarar que, perante esta justa advertência, os gémeos desataram às gargalhadas.
- Por outro lado - prosseguiu o ministro - se ele se recusa, teimosamente, a empregar o lubrificante, teremos de confiscar-lhe as cadeias. É impossível dormir, com um barulho assim no corredor!
Mas durante todo o resto da semana o fantasma não os incomodou absolutamente nada. A coisa única a excitar a atenção era o reaparecimento contínuo da mancha de sangue no parquete da biblioteca. E essa era uma estranha coisa, porque mr. Otis fechava a porta à chave todas as tardes e mandava correr bem as janelas. O facto de a mancha mudar tantas vezes de tom como um camaleão provocava igualmente numerosos comentários. Em determinadas manhãs, aparecia de um vermelho escuro, quase um vermelho indiano; no dia seguinte, era um rubro retinto; no outro dia, era um violeta sumptuoso; e até uma vez, quando os Otis todos desceram para as orações familiares, conforme os ritos cheios de simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal, verificaram que a mancha era de um verde-esmeralda esplendente. É bem de ver, estas mutações caleidoscópicas divertiam muito a família; e, todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respeito. A única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena Virgínia, que, por qualquer ignota razão, parecia sempre consternada ao ver a mancha de sangue e esteve pertíssimo de desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-esmeralda.
A segunda aparição do fantasma efectuou-se no Domingo à noite. Pouco tempo depois de se terem metido na cama, foram de súbito alarmados por um medonho estrondo vindo do vestíbulo. Descendo precipitadamente a escada, verificaram que uma grande e antiga armadura, despegada da sua peanha, fora projectada para o lajedo, enquanto o fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de alto espaldar e com uma expressão de angústia, esfregava os joelhos.
Os gémeos, que se tinham munido das suas zarabatanas, descarregaram imediatamente dois pequenos projécteis sobre o fantasma, com essa precisão de pontaria que só longos e sérios exercícios, tendo por alvo um professor de escrita, pode dar, enquanto o Ministro dos Estados-Unidos, mantendo-o sob a ameaça do seu revólver, lhe intimava, segundo a etiqueta, que pusesse as mãos ao alto.
O fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de raiva, e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando na sua passagem a vela de Washington Otis e deixando-os em escuridão completa.
Ao alcançar o cimo da escadaria o fantasma recobrou ânimo e decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos, cuja utilidade mais de uma vez havia experimentado. Contava-se que aquilo fizera embranquecer, no decurso de uma noite apenas, a cabeleira postiça de lorde Raker, e que provocara a demissão de três das governantas francesas de lady Canterville antes de findo o seu primeiro mês de serviço. Por conseguinte, riu com o seu riso mais horroroso, até o velho tecto abobadado repercutir com o estrépito desse riso infernal. Mas, mal extinto o último eco, abriu-se uma porta e mrs. Otis apareceu embrulhada num roupão azul pálido.
- Receio que o senhor não esteja bem de saúde. Trago-lhe aqui um frasco de tintura do Doutor Dobell. Se é uma indigestão, verá que o remédio é excelente.
O fantasma fixou-a, cheio de fúria, e esteve prestes a transformar-se num canzarrão negro, realização que lhe tinha valido um justo renome e ao qual o médico da família atribuía sempre a idiotia incurável do tio de lorde Canterville, o nobre Thomas Horton. Mas um rumor de passos que se aproximavam fizeram-no hesitar no cruel projecto. Contentou-se em tornar-se levemente fosforescente, e esvaiu-se com um grunhido sepulcral no momento preciso em que os gémeos chegavam à altura em que se encontrava.
Tendo regressado ao seu quarto, num enorme abatimento, dentro em pouco apossou-se dele a mais violenta agitação. O desplante dos gémeos e o materialismo grosseiro de mrs. Otis eram, sem sombra de dúvida, extremamente aborrecidos; mas o que o consternava mais era não ter podido envergar a armadura. Acrisolara suas esperanças em que até mesmo uns americanos modernos não deixariam de perturbar-se à vista de um espectro com armadura guerreira, senão por inteligentes razões ao menos por respeito por Longfellow, seu poeta nacional, cujos versos graciosos e cheios de encanto o tinham ajudado mais de uma vez a passar o tempo durante a ausência dos Canterville. Para mais, era a sua própria armadura. Ostentara-a com grande êxito no torneio de Kenilworth e recebera os mais calorosos cumprimentos da Rainha-Virgem em pessoa. Mas quando quisera, agora, enfiar a armadura, fora de todo em todo esmagado pelo peso da enorme couraça e do elmo de aço, e caíra desamparadamente sobre o lajedo, esfolando a valer os dois joelhos e contundindo as articulações da mão direita.
Esteve doente durante muitos dias e não saiu do quarto senão para manter a nódoa de sangue. Todavia, com grandes cuidados, restabeleceu-se e resolveu fazer terceira tentativa para aterrorizar o Ministro dos Estados-Unidos e sua família. Escolheu a sexta-feira, 14 de Agosto, para a nova aparição, e ocupou a maior parte desse dia a passar em revista o seu guarda-roupa. Optou, por fim, por um chapéu de abas largas ornado de uma pluma vermelha, um sudário recortado nos punhos e no pescoço e uma adaga ferrugenta.
No decurso do serão surdiu uma violenta tempestade. O vento soprava tão forte que sacudia janelas e portas da velha moradia. Era exactamente este o tempo de que o fantasma gostava. Eis o plano em que assentara. Iria de manso e manso até o quarto de Washington Otis; junto do leito, soltaria gritos e enterraria três vezes a adaga na sua própria garganta, ao som de uma lânguida música. Alimentava uma razão de queixa especial contra Washington, por saber muito bem, como sabia, que era ele quem, com o seu sabão para tirar nódoas, fazia incessantemente desaparecer a famosa mancha de sangue dos Cantervilles. Após ter submetido o descuidado e audacioso rapaz a um estado de abjecto terror, dirigir-se-ia então ao quarto ocupado pelo Embaixador dos Estados-Unidos e sua mulher; pousaria na testa de mrs. Otis a mão cheia de visco, ao mesmo tempo que insinuaria ao ouvido do esposo, todo ele numa tremura, os horríveis segredos de além-túmulo.
Quanto à pequena Virgínia, ainda nada decidira. Era meiga e bonita e nunca o insultara. Alguns grunhidos roucos e profundos vindos de dentro do guarda-fato seriam, pensou, mais do que suficientes, e se por acaso eles a não despertassem poderia puxar com os dedos descarnados e trémulos o couvre-pied da rapariguinha.
Na parte concernente aos gémeos estava deveras decidido a dar-lhes uma lição. Naturalmente, a primeira coisa a fazer era sentar-se sobre o peito deles, de maneira a produzir a sufocante sensação do pesadelo; depois, ficando as suas camas tão juntinhas, surgiria de permeio sob a forma de um cadáver verde e gelado, até que os manos se pusessem paralíticos de medo; por último, despojando-se do sudário, rojar-se-ia em volta de todo o aposento com a sua ossada embranquecida, fazendo ao mesmo tempo girar as meninas dos olhos, numa imitação de «Daniel o Mudo, ou o Esqueleto do Suicida», papel no qual produzira grande efeito em muitíssimas ocasiões e a que atribuía a mesma importância que à sua famosa personagem de «Martinho, o Louco ou o Mistério Mascarado».
Às dez horas e meia percebeu que a família se ia deitar. Esteve um bocado de tempo perturbado pelas sonoras risadas dos gémeos, os quais, com a descuidada alegria de estudantes, certamente se divertiam antes de se enfiarem na cama. Mas às onze e um quarto tudo estava em sossego e, ao soar a meia-noite, ele partiu para a sua expedição.
O mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o corvo crocitava no cimo do velho teixo e o vento vagueava em volta da casa, gemendo como alma penada. Mas a família Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o cadenciado ressonar do Ministro dos Estados Unidos cobria o ruído do temporal. O fantasma esgueirou-se para fora da madeira das paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca murcha e cruel desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua escondeu-se por detrás de uma nuvem quando ele passou junto da grande janela ogival ornada de um brasão azul e ouro, que representava as suas próprias armas e as da sua esposa assassinada. Deslizava como uma sombra funesta e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs ouvir alguém a chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido de um cão subia da Granja Vermelha. Prosseguiu caminho, resmungando pragas do século dezasseis e brandindo de quando em quando a adaga corroída de ferrugem.
O fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que conduzia ao quarto do infortunado Washington. Parou um instante. O vento sacudia-lhe as madeixas compridas de cor de cinza e fazia ondular de maneira grotesca e fantástica o sudário de morto. O quadro inspirava indizível horror. O relógio soou então o quarto de hora. Compreendeu que tinha chegado o momento. Soltou, baixinho, uma risadinha de escárnio e transpôs a esquina do corredor. Mas, mal tinha dado aí um passo, logo recuou com um lamentoso gemido de terror e logo também ocultou nas suas mãos ossudas a face macilenta.
Diante de si erguia-se um horrível espectro, tão imóvel como uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho de um louco. A cabeça dele era calva e luzidia, a face redonda, gorda e branca. Um riso ignóbil parecia ter-lhe contorcido as feições numa expressão eterna de zombaria. Dos olhos escorriam-lhe clarões escarlates. A boca era um largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta, semelhante à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico. Um letreiro contendo uma inscrição em caracteres estranhos e antigos ornava-lhe o peito: sem dúvida, um certificado de infâmia, a narrativa de medonhas faltas, uma lista de crimes espantosos. Com a mão direita, brandia um gládio de aço brilhante.
Nunca tendo visto, até à data, nenhum fantasma, sentiu naturalmente um grande pavor. Lançou, rápido outro olhar ao terrível espectro e desatou a fugir para o seu quarto, tropeçando, ao seguir pelo corredor, no longo sudário que trazia. Por último, deixou cair a adaga ferrugenta dentro das grossas botas do Embaixador, onde o mordomo a foi encontrar no dia seguinte de manhã.
Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da estreita cama de lona e enterrou o rosto nos lençóis. Mas transcorrido um pedaço de tempo a antiga coragem dos Cantervilles recuperou os seus direitos. Decidiu ir falar com o outro fantasma, logo que nascesse o dia. E apenas a aurora prateou as colinas, voltou ao sítio onde havia, pela primeira vez, lançado os olhos sobre o formidável espectro, raciocinando que, no fim de contas, dois fantasmas valiam mais do que um, e que com a ajuda do seu novo colega talvez vencesse melhor os gémeos.
Mas quando ali se encontrou, no mesmo lugar, um horrível espectáculo feriu seus olhos. Era de todo evidente que acontecera qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desaparecera completamente das órbitas, o gládio brilhante escorregara-lhe da mão e o corp
o encostava-se à parede numa atitude de constrangimento e incómodo.
Precipitou-se para ele e tomou-o nos braços. Mas, com assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão; o corpo foi-se também abaixo, e percebeu que estreitava apenas um cortinado de cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo, uma machada de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz de compreender esta curiosa transformação, pegou no letreiro com pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras abomináveis:
O FANTASMA OTIS
é o único, autêntico e original
Desconfiai das falsificações!...
Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado uma partida! A característica expressão, dos Cantervilles perpassou-lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes e, levantando muito alto, acima da cabeça, as mãos descarnadas, jurou, segundo a fraseologia pitoresca da escola antiga, que, quando o galo fizesse ouvir mais duas vezes o seu alegre apelo, haviam de dar-se ali acontecimentos sangrentos e a morte deslizaria por aqueles lugares em silenciosos passos.
Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância, de uma granja coberta de telhas vermelhas, a voz de um galo. O fantasma soltou um prolongado e amargo riso e esperou. Hora após hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha, o galo não repetiu o canto. Por fim, às sete e meia, a chegada dos serviçais obrigou-o a abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu abortado plano. Consultou então muitas obras a que dedicava particular apreço e que tratavam da antiga cavalaria. Aí verificou que, de todas as vezes que tal juramento havia sido formulado, sempre o galo cantara segunda vez.
- Diabos levem aquele maldito volátil! - resmungou ele. - Ah! não me encontrar ainda no tempo em que, com minha intrépida lança, lhes trespassaria a gorja e em que o teria obrigado a cantar só para mim até perder o sopro!
Depois estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, em que permaneceu até o cerrar da noitinha.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
A DONZELA E O FANTASMA
A DONZELA E O FANTASMA - CAPÍTULO IV
CAPÍTULO IV
No dia imediato o fantasma estava muito fraco e muito cansado. Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro últimas semanas. Com os nervos quebrados, até o menor ruído o sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca. Se a família Otis não queria aquilo, claro estava que nem por sombras era digna do caso. Com plena evidência, essas pessoas viviam num plano de existência de baixo materialismo e eram em absoluto incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenómenos sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o desenvolvimento dos corpos astrais eram, sem dúvida, coisas diferentes e alheias à atenção daquela gente. Ele, fantasma, tinha como missão, como missão solene, aparecer no corredor uma vez por semana e ulular através de um janelão em ogiva na primeira e na terceira quartas-feiras do mês, e não via maneira de poder subtrair-se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo, fora culposa; mas, por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em tudo quanto se relacionava com o sobrenatural.
Três sábados a fio o fantasma atravessou, portanto, o corredor como de costume, entre a meia-noite e as três da manhã, tomando mil precauções para não ser visto nem ouvido. Tirou os sapatos, pisou tão levemente quanto possível as faixas do parquete roídas pelo caruncho, enrolou-se num amplo manto de veludo negro e decidiu-se a empregar o lubrificante para untar as suas cadeias. É-me forçoso reconhecer que não foi sem dificuldade que veio a adoptar este derradeiro meio de protecção; mas, uma noite e à hora em que a família da casa se preparava para ir jantar, introduziu-se nos aposentos de mr. Otis e lançou mão do respectivo frasco. Ao fazê-lo experimentou, a princípio, um pouco de humilhação, mas logo adquiriu a inteligência bastante para se inteirar de que a invenção estava longe de ser má e de que, até certo ponto, lhe favorecia os planos.
Apesar de tudo, não o deixavam, entretanto, em paz. Estendiam constantemente cordas no corredor, nas quais, quando estava escuro, tropeçava; e uma vez em que se encontrava vestido para desempenhar o papel do «Negro Isaque ou o Caçador de Hogley Woods», deu uma queda muito grave sobre um resvaladouro que os gémeos haviam armado e que ia desde a Sala das Tapeçarias até o cimo da escada de carvalho. Esta última afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu fazer um derradeiro esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social. Decidiu pois uma visita, para a noite imediata, aos juvenis e insolentes colegiais de Eton, no seu famoso disfarce de «Ruperto, o Arrisca-Tudo ou o Conde-sem-Cabeça».
O fantasma já não fazia qualquer aparição mascarado desta maneira desde mais de setenta anos atrás, precisamente desde que, assim vestido, aterrorizara a gentil lady Bárbara Modish, ao ponto de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô do lorde Canterville actual e fugido para Gretna Green com o belo Jack Castleton, declarando que nada deste mundo a decidira a entrar numa família que deixava um tão horroroso fantasma percorrer o terraço, ao cerrar-se o crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi morto em duelo por lorde Canterville em Wandsworth Common, e lady Bárbara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge Wells antes de findo esse mesmo ano; de sorte que, sob todos os aspectos, fora um esplêndido êxito.
Todavia, tratava-se de uma «composição» extremamente difícil (se me é permitido usar esta expressão de teatro a propósito de um dos maiores mistérios do sobrenatural, ou, para empregar um termo científico, do mundo supra-normal), e foram-lhe precisas três boas horas para executar os preparativos. Tudo se aprontou, finalmente. Estava muitíssimo satisfeito com o seu aspecto. As altas botas de montar que condiziam com o trajo eram um tanto largas de mais para ele, e não tinha podido achar senão uma das pistolas dos coldres da sela; mas, em suma, estava muito contente, e, à uma hora e um quarto, deslizou através do forro de madeira e desceu suavemente para o corredor. Chegado ao quarto que os gémeos ocupavam (designavam-no por «o quarto azul», por causa do tom das pinturas), encontrou a porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito, empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro de água entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-lhe pela espádua esquerda. No mesmo instante, risadas que alguém procurava reprimir subiram dos leitos de colunas. O abalo nervoso que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu esconderijo com a maior celeridade. No dia seguinte, muitíssimo constipado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que lhe restava era de não ter levado a sua própria cabeça nesta expedição; de contrário, a imprudência poder-lhe-ia ter acarretado as mais graves consequências.
O fantasma abandonou então toda a esperança de assustar aquela grosseira família americana e contentou-se, afinal, com percorrer de pantufas de solas de feltro os corredores, o pescoço envolvo num espesso cachené vermelho por causa das correntes de ar e empunhando um bacamartezinho com receio de ser atacado pelos gémeos. Foi em 19 de Setembro que ele recebeu o golpe final.
O fantasma descera ao vasto hall de entrada, certo de que aí ninguém o molestaria, e divertia-se a alvejar com observações satíricas as grandes fotografias do Ministro dos Estados Unidos e de sua mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituído os retratos da família dos Cantervilles. Vestia-o um longo sudário, muito simples mas decente, salpicado de manchas de lama vinda do cemitério. Atara os queixos com uma ligadura de tela amarelada e segurava uma pequena lanterna e uma enxada de coveiro. Numa palavra, estava disfarçado para o papel de «Jonas, o Morto sem Sepultura, ou o Ladrão de Cadáveres de Chertsey Barn», uma das suas mais notáveis criações, da qual ora os Cantervilles tinham excelentes razões para se lembrar, porque fora essa a verdadeira origem do pleito com o seu vizinho, lorde Rufford.
Eram aproximadamente duas horas e um quarto da manhã. O fantasma poderia afirmar que todos os moradores da casa repousavam. Mas ao dirigir-se, em ar de passeio, para a biblioteca, no fito de ver se ainda restava qualquer vestígio da mancha de sangue, saltaram de súbito sobre ele, de um recanto escuro, dois vultos que agitavam ferozmente os braços por cima da cabeça e lhe berravam «U-u! U-u!» aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitíssimo natural, precipitou-se para a escadaria: aí, porém, esperava-o Washington com a grande mangueira de rega do jardim. Cercado de todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu no interior do enorme fogão, que, felizmente para si, não estava aceso. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e alcançou o seu quarto num lamentável estado de sujidade, desarranjo e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições nocturnas. Os gémeos muitas vezes se esconderam à sua espera e, todas as noites, juncavam de cascas de nozes os corredores, coisa que aborrecia bastante os país e os criados; mas foi tudo inútil. Era manifesto que o fantasma, ferido em seus sentimentos, se recusava a aparecer. Em consequência, mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a «História do Partido Democrático», em que trabalhava havia uma porção de anos. Mrs. Otis organizou um maravilhoso clam-bak², que causou espanto em toda a região. Os rapazes dedicaram-se ao cross, ao écarté, ao poker e a outros jogos nacionais americanos. E Virgínia percorreu no seu poldro todos os caminhos circunvizinhos, em companhia do duque de Cheshire, que tinha vindo passar no Parque Canterville a sua última semana de férias. Supôs-se, naturalmente, que o fantasma abalara dali, e mr. Otis escreveu a lorde Canterville a informá-lo do caso. Este respondeu que a notícia lhe dava grande prazer, e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do Ministro.
Mas os Otis enganavam-se, porque o fantasma permanecia ainda na casa e, se bem que estivesse agora quase inválido, não tinha de forma nenhuma a intenção de ficar quieto, sobretudo desde que soube que, entre os convidados, se encontrava o duquezinho de Cheshire, cujo tio-avô, lorde Francis Stilton, apostara um dia cem guinéus em como jogaria aos dados com o fantasma de Canterville, vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da sala de jogo completamente paralítico. Não obstante ter vivido até avançada idade, nunca mais pôde dizer senão isto: «duplo-seis!».
A história era bem conhecida na época em que sucedera o caso; mas, para poupar o sentimento de duas famílias nobres, tudo foi tentado para abafar a coisa. Todavia, encontrar-se-á uma sua narrativa pormenorizada no terceiro volume da obra de lorde Tattle: «Memórias Relativas ao Príncipe Regente e seus Amigos».
Era, por conseguinte, natural que o fantasma quisesse provar que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais o unia um parentesco afastado, devido a uma sua prima-irmã ter casado em segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os duques de Cheshire, como se sabe, descendem em linha directa. Consequentemente, tomou as suas disposições para aparecer ao juvenil enamorado de Virgínia na sua célebre criação do «Monge Vampiro, ou o Beneditino Exangue», espectáculo tão horrível que a velha lady Startup, ao dar com os olhos nele, o que lhe sucedeu nessa fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos, que terminaram por um ataque de apoplexia; morreu três dias depois, não sem ter deserdado os Canterville, seus mais próximos parentes, e deixado todo o dinheiro que possuía ao seu boticário de Londres.
No dia imediato o fantasma estava muito fraco e muito cansado. Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro últimas semanas. Com os nervos quebrados, até o menor ruído o sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca. Se a família Otis não queria aquilo, claro estava que nem por sombras era digna do caso. Com plena evidência, essas pessoas viviam num plano de existência de baixo materialismo e eram em absoluto incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenómenos sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o desenvolvimento dos corpos astrais eram, sem dúvida, coisas diferentes e alheias à atenção daquela gente. Ele, fantasma, tinha como missão, como missão solene, aparecer no corredor uma vez por semana e ulular através de um janelão em ogiva na primeira e na terceira quartas-feiras do mês, e não via maneira de poder subtrair-se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo, fora culposa; mas, por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em tudo quanto se relacionava com o sobrenatural.
Três sábados a fio o fantasma atravessou, portanto, o corredor como de costume, entre a meia-noite e as três da manhã, tomando mil precauções para não ser visto nem ouvido. Tirou os sapatos, pisou tão levemente quanto possível as faixas do parquete roídas pelo caruncho, enrolou-se num amplo manto de veludo negro e decidiu-se a empregar o lubrificante para untar as suas cadeias. É-me forçoso reconhecer que não foi sem dificuldade que veio a adoptar este derradeiro meio de protecção; mas, uma noite e à hora em que a família da casa se preparava para ir jantar, introduziu-se nos aposentos de mr. Otis e lançou mão do respectivo frasco. Ao fazê-lo experimentou, a princípio, um pouco de humilhação, mas logo adquiriu a inteligência bastante para se inteirar de que a invenção estava longe de ser má e de que, até certo ponto, lhe favorecia os planos.
Apesar de tudo, não o deixavam, entretanto, em paz. Estendiam constantemente cordas no corredor, nas quais, quando estava escuro, tropeçava; e uma vez em que se encontrava vestido para desempenhar o papel do «Negro Isaque ou o Caçador de Hogley Woods», deu uma queda muito grave sobre um resvaladouro que os gémeos haviam armado e que ia desde a Sala das Tapeçarias até o cimo da escada de carvalho. Esta última afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu fazer um derradeiro esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social. Decidiu pois uma visita, para a noite imediata, aos juvenis e insolentes colegiais de Eton, no seu famoso disfarce de «Ruperto, o Arrisca-Tudo ou o Conde-sem-Cabeça».
O fantasma já não fazia qualquer aparição mascarado desta maneira desde mais de setenta anos atrás, precisamente desde que, assim vestido, aterrorizara a gentil lady Bárbara Modish, ao ponto de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô do lorde Canterville actual e fugido para Gretna Green com o belo Jack Castleton, declarando que nada deste mundo a decidira a entrar numa família que deixava um tão horroroso fantasma percorrer o terraço, ao cerrar-se o crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi morto em duelo por lorde Canterville em Wandsworth Common, e lady Bárbara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge Wells antes de findo esse mesmo ano; de sorte que, sob todos os aspectos, fora um esplêndido êxito.
Todavia, tratava-se de uma «composição» extremamente difícil (se me é permitido usar esta expressão de teatro a propósito de um dos maiores mistérios do sobrenatural, ou, para empregar um termo científico, do mundo supra-normal), e foram-lhe precisas três boas horas para executar os preparativos. Tudo se aprontou, finalmente. Estava muitíssimo satisfeito com o seu aspecto. As altas botas de montar que condiziam com o trajo eram um tanto largas de mais para ele, e não tinha podido achar senão uma das pistolas dos coldres da sela; mas, em suma, estava muito contente, e, à uma hora e um quarto, deslizou através do forro de madeira e desceu suavemente para o corredor. Chegado ao quarto que os gémeos ocupavam (designavam-no por «o quarto azul», por causa do tom das pinturas), encontrou a porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito, empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro de água entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-lhe pela espádua esquerda. No mesmo instante, risadas que alguém procurava reprimir subiram dos leitos de colunas. O abalo nervoso que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu esconderijo com a maior celeridade. No dia seguinte, muitíssimo constipado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que lhe restava era de não ter levado a sua própria cabeça nesta expedição; de contrário, a imprudência poder-lhe-ia ter acarretado as mais graves consequências.
O fantasma abandonou então toda a esperança de assustar aquela grosseira família americana e contentou-se, afinal, com percorrer de pantufas de solas de feltro os corredores, o pescoço envolvo num espesso cachené vermelho por causa das correntes de ar e empunhando um bacamartezinho com receio de ser atacado pelos gémeos. Foi em 19 de Setembro que ele recebeu o golpe final.
O fantasma descera ao vasto hall de entrada, certo de que aí ninguém o molestaria, e divertia-se a alvejar com observações satíricas as grandes fotografias do Ministro dos Estados Unidos e de sua mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituído os retratos da família dos Cantervilles. Vestia-o um longo sudário, muito simples mas decente, salpicado de manchas de lama vinda do cemitério. Atara os queixos com uma ligadura de tela amarelada e segurava uma pequena lanterna e uma enxada de coveiro. Numa palavra, estava disfarçado para o papel de «Jonas, o Morto sem Sepultura, ou o Ladrão de Cadáveres de Chertsey Barn», uma das suas mais notáveis criações, da qual ora os Cantervilles tinham excelentes razões para se lembrar, porque fora essa a verdadeira origem do pleito com o seu vizinho, lorde Rufford.
Eram aproximadamente duas horas e um quarto da manhã. O fantasma poderia afirmar que todos os moradores da casa repousavam. Mas ao dirigir-se, em ar de passeio, para a biblioteca, no fito de ver se ainda restava qualquer vestígio da mancha de sangue, saltaram de súbito sobre ele, de um recanto escuro, dois vultos que agitavam ferozmente os braços por cima da cabeça e lhe berravam «U-u! U-u!» aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitíssimo natural, precipitou-se para a escadaria: aí, porém, esperava-o Washington com a grande mangueira de rega do jardim. Cercado de todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu no interior do enorme fogão, que, felizmente para si, não estava aceso. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e alcançou o seu quarto num lamentável estado de sujidade, desarranjo e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições nocturnas. Os gémeos muitas vezes se esconderam à sua espera e, todas as noites, juncavam de cascas de nozes os corredores, coisa que aborrecia bastante os país e os criados; mas foi tudo inútil. Era manifesto que o fantasma, ferido em seus sentimentos, se recusava a aparecer. Em consequência, mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a «História do Partido Democrático», em que trabalhava havia uma porção de anos. Mrs. Otis organizou um maravilhoso clam-bak², que causou espanto em toda a região. Os rapazes dedicaram-se ao cross, ao écarté, ao poker e a outros jogos nacionais americanos. E Virgínia percorreu no seu poldro todos os caminhos circunvizinhos, em companhia do duque de Cheshire, que tinha vindo passar no Parque Canterville a sua última semana de férias. Supôs-se, naturalmente, que o fantasma abalara dali, e mr. Otis escreveu a lorde Canterville a informá-lo do caso. Este respondeu que a notícia lhe dava grande prazer, e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do Ministro.
Mas os Otis enganavam-se, porque o fantasma permanecia ainda na casa e, se bem que estivesse agora quase inválido, não tinha de forma nenhuma a intenção de ficar quieto, sobretudo desde que soube que, entre os convidados, se encontrava o duquezinho de Cheshire, cujo tio-avô, lorde Francis Stilton, apostara um dia cem guinéus em como jogaria aos dados com o fantasma de Canterville, vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da sala de jogo completamente paralítico. Não obstante ter vivido até avançada idade, nunca mais pôde dizer senão isto: «duplo-seis!».
A história era bem conhecida na época em que sucedera o caso; mas, para poupar o sentimento de duas famílias nobres, tudo foi tentado para abafar a coisa. Todavia, encontrar-se-á uma sua narrativa pormenorizada no terceiro volume da obra de lorde Tattle: «Memórias Relativas ao Príncipe Regente e seus Amigos».
Era, por conseguinte, natural que o fantasma quisesse provar que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais o unia um parentesco afastado, devido a uma sua prima-irmã ter casado em segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os duques de Cheshire, como se sabe, descendem em linha directa. Consequentemente, tomou as suas disposições para aparecer ao juvenil enamorado de Virgínia na sua célebre criação do «Monge Vampiro, ou o Beneditino Exangue», espectáculo tão horrível que a velha lady Startup, ao dar com os olhos nele, o que lhe sucedeu nessa fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos, que terminaram por um ataque de apoplexia; morreu três dias depois, não sem ter deserdado os Canterville, seus mais próximos parentes, e deixado todo o dinheiro que possuía ao seu boticário de Londres.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
A DONZELA E O FANTASMA
A DONZELA E O FANTASMA - CAPÍTULO V
CAPÍTULO V
Passados dias, andavam Virgínia e o seu apaixonado de cabelos em anéis a percorrer a cavalo as pradarias de Brockley, eis senão quando a rapariguinha, sentindo-se presa num silvado, rasgou o vestido de amazona tão desastradamente, que, ao reentrar em casa, decidiu tomar a escada secreta para que ninguém lhe pusesse a vista em cima. Ao passar, porém, a correr, diante da Sala das Tapeçarias, cuja porta precisamente estava aberta, julgou perceber a existência de alguém no interior. Vindo-lhe à ideia que seria a criada de quarto da mãe, a qual às vezes ia para ali costurar, entrou para pedir à mulher que lhe consertasse a saia.
E, com imensa surpresa sua, Virgínia viu o fantasma de Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela, a contemplar o ouro das árvores amarelentas, a ver as folhas rubras rodopiarem como loucas na grande alameda. A cabeça apoiada na mão, toda a sua atitude traía uma depressão extrema. Na verdade, ele apresentava um ar tão desolado e tão lamentável, que a pequena Virgínia, cujo primeiro movimento foi fugir e encerrar-se no quarto, tomada logo de piedade resolveu tentar reconfortá-lo. Os passos de Virgínia eram tão leves e a melancolia do fantasma tão profunda, que este não teve consciência.
- Sinto-me contristada por sua causa - disse Virgínia - os meus irmãos voltam amanhã para Eton e, se o senhor se portar bem, ninguém o atormentará.
- Pedirem-me que me porte bem! Mas é absurdo! - respondeu ele com os olhos escancarados de espanto à vista daquela gentil donzelinha que ousava dirigir-se-lhe. - É completamente absurdo! É imprescindível que eu faça ranger as minhas cadeias e ulule pelos buracos das fechaduras e passeie por aí de noite, se é a isto que a menina faz alusão. Essa é a minha única razão de existência.
Mas, à última hora, o terror que lhe causavam os gémeos impediu o fantasma de abandonar o seu quarto. E, na câmara real, o duquezinho dormia em paz no vasto leito de baldaquino ornado de plumas e sonhava com Virgínia.
- Isso não e uma razão de existência, e o senhor bem sabe que tem sido muito mau. Mrs. Umney disse-nos, no dia da nossa chegada aqui, que o senhor matou a sua mulher.
- Bem, concordo - disse com vivacidade o fantasma -; mas trata-se de um assunto de família com o qual os outros nada têm.
- É multo mal feito matar alguém - insistiu Virgínia, que, vezes, mostrava uma encantadora expressão de gravidade puritana, herdada de qualquer antepassado da Nova Inglaterra.
- Oh, detesto esse corriqueiro rigor da ética abstracta! Minha mulher era feia, não engomava nunca convenientemente a minha gola de folhos e não percebia nada de cozinha. Olhe, eu tinha matado um veado nos bosques de Hogley, um veadozinho magnífico. Quer saber como ela o fez aparecer à mesa? Mas que importa o caso, presentemente?! Tudo isso acabou. Não creio, porém, que fosse muito bonito da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de fome, embora eu a tenha matado.
- Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor fantasma... quero dizer, sir Simon... o senhor tem fome? Trago ali uma sanduíche no meu saco de costura. Quere-a?
- Não, obrigado, já não como nada, agora. Mas é, apesar de tudo, muita amabilidade da sua parte. A menina é muito mais gentil do que o resto da sua horrenda família, grosseira, vulgar, indigna!
- Cale-se! - bradou Virgínia batendo com o pé no chão. - Quem é grosseiro, horrendo e vulgar, é o senhor; e, quanto a indignidade, sabe perfeitamente que foi o senhor quem roubou as bisnagas da minha caixa de pintura para tentar avivar essa ridícula mancha de sangue na biblioteca. Primeiramente, deitou mão a todos os meus encarnados, sem esquecer o vermelhão, e tive de deixar de pintar o pôr do Sol; depois arrebatou o verde-esmeralda e o amarelo cromado; e, finalmente, só me restavam o anil e o branco da China, de modo que só podia pintar paisagens à luz do luar, que deprimem tanto quando as olhamos e que são tão pouco fáceis de executar. Eu nunca disse nada contra o senhor; contudo, andava muito aborrecida e tudo aquilo era bastante ridículo. Já se viu sangue de tom verde-esmeralda?
- Mas - disse o fantasma acalmando-se um pouco -, que hei-de eu fazer? Nestes nossas dias, é muito difícil encontrar sangue verdadeiro e, visto que foi o seu irmão a romper com o tira-nódoas, não vejo motivo para não lançar mão das bisnagas que lhe pertencem. Quanto à cor, é simples questão de gosto: os Cantervilles, por exemplo, têm sangue azul, o mais azulado de Inglaterra, mas sei que vós outros, os americanos, troçais a valer de tudo isto.
- O senhor nada sabe a esse respeito, e o melhor que tem a fazer é emigrar, para cultivar o espírito. Meu pai não deixará de sentir-se muitíssimo feliz em lhe conseguir uma passagem gratuita. O senhor não encontrará dificuldade alguma na alfândega, onde todos os funcionários são democratas. Uma vez em Nova-Iorque, alcançará o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que daria cem mil dólares para ter um antepassado, e ainda mais para ter um fantasma na família.
- Tenho a convicção de que não gostaria da América.
- Porque, suponho, não temos lá ruínas, nem curiosidades - disse Virgínia ironicamente.
- Nem ruínas! Nem curiosidades! - replicou o fantasma - Mas tendes a vossa marinha e essas vossas maneiras!
- Adeus! Vou pedir ao meu papá que conceda aos gémeos uma semana suplementar de férias.
- Não, não vá, miss Virgínia! - implorou o fantasma. - Estou tão só e tão desgraçado e não sei verdadeiramente o que fazer. Quero dormir e não posso.
- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Às vezes é difícil a gente manter-se acordada, na igreja sobretudo, mas é coisa bem fácil dormir. Até os bebés sabem isso; todavia, não são muito inteligentes.
- Há trezentos anos que não durmo, - disse ele com tristeza (os belos olhos azuis de Virgínia dilataram-se de espanto). - Há trezentos anos que não durmo, e estou tão cansado!
O rosto de Virgínia tornou-se grave e os labiozinhos puseram-se-lhe a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do espectro e, ajoelhando-se junto dele, ergueu os olhos para a velha face pergaminhanda.
- Pobre, pobre fantasma! - murmurou - Não há então sítio onde possa dormir?
- Além em baixo, para lá do pinhal - respondeu ele numa voz lenta e meditativa -, há um jardinzinho. A erva cresce ali, espessa e alta, salpicada das grandes estrelas brancas da cicuta, e o rouxinol canta lá toda a noite. Toda a noite ali canta o rouxinol, e a fria lua de cristal reclina-se para ver melhor, e o cipreste estende seus braços gigantescos sobre os dormentes.
Os olhos de Virgínia velaram-se de lágrimas e ela escondeu o rosto nas mãos.
- Quer aludir ao jardim da Morte - murmurou.
- Sim, da Morte! A morte deve ser tão bela! Repousar na terra doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de nós, e escutar o silêncio! Não ter ontem nem amanhã! Esquecer o tempo! Esquecer a vida, estar em paz! A menina pode ajudar-me. Pode abrir para mim as portas da casa da Morte, porque traz o Amor consigo e o Amor é mais forte do que a Morte.
Virgínia pôs-se a tremer, percorreu-a toda um frémito gelado e, durante momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de estar sonhando um terrível sonho.
O fantasma voltou então a falar, e a sua voz ressoava como um suspiro do vento.
- Já leu alguma vez a velha profecia inscrita nos vitrais da biblioteca?
- Oh, muitas vezes! - exclamou a donzelinha erguendo os olhos. - Conheço-a multo bem. Está pintada em curiosas letras a negro e é difícil de ler. São apenas seis versos:
Quando uma criança de coração puro conseguir
Colher dos lábios pecaminosos uma prece,
Quando a estéril amendoeira florescer,
Quando dos olhos puros brotar uma lágrima,
Esta casa ficará para todo o sempre tranquila
E a Graça voltará a Canterville.
«Mas não sei o que isto quer dizer.
- Quer dizer - respondeu ele tristemente - que a menina deve chorar comigo pelos meus pecados, porque eu já não tenho lágrimas, e rezar comigo pela minha alma, porque nada me resta de fé. Então, se tiver sido sempre meiga e boa, o Anjo da Morte terá piedade de mim. Há-de ver, na escuridão, vultos horríveis, vozes maldosas falar-lhe-ão ao ouvido, mas não sofrerá mal nenhum porque o Inferno nada pode contra a pureza de uma criança.
Virgínia não respondeu e o fantasma torceu as mãos com desespero, baixando o olhar sobre a cabeça coroada de cabelos de ouro reclinada perto dele. A jovem ergueu-se de súbito, muito pálida. Um estranho clarão lhe perpassou nos olhos.
- Não tenho medo - disse ela com firmez -. Rogarei ao Anjo que tenha piedade de vós.
O fantasma endireitou o busto ao mesmo tempo que soltava um débil grito de alegria, e, inclinando-se com uma gentileza já há muito fora de moda, pegou na mão da rapariguinha e beijou-lha. Os dedos de sir Simon tinham a frialdade do gelo e seus lábios queimavam como fogo, mas Virgínia não sentiu o menor desfalecimento enquanto ele a fazia atravessar o compartimento cheio de sombras. Bordadas nas tapeçarias, cujo tom verde fora desbotando, viam-se figurinhas de caçadores. Estes sopraram nas suas trompas ornadas de glandes e, com as minúsculas mãos, fizeram-lhe sinal para que arrepiasse caminho.
- Retrocede, Virgíninha - gritavam eles - vai-te embora!
Mas o fantasma estreitava-lhe a mão com mais força e Virgínia fechou os olhos para os não ver. Horrorosos animais de cauda semelhante à dos lagartos, olhos salientes de cabeça, pestanejaram-lhe repetidamente, de cima do fogão esculpido, e murmuraram:
- Toma cuidado, Virgininha, toma cuidado, olha que talvez nunca mais te tornemos a ver!
Mas o fantasma deslizou com mais celeridade e Virgínia não deu ouvidos àqueles. Ao atingirem a extremidade da sala, o fantasma parou e murmurou palavras que Virgínia não podia compreender. Ela abriu os olhos e viu a parede desaparecer lentamente como um nevoeiro, após o que se encontrou diante de uma grande caverna negra. Envolveu-os um vento áspero e frio e a jovem sentiu que a puxavam pela saia.
- Depressa! Depressa! - gritou o fantasma -. Senão será demasiadamente tarde.
Num instante o forro de madeira tornou a cerrar-se por detrás deles. A Sala das Tapeçarias ficara deserta.
Passados dias, andavam Virgínia e o seu apaixonado de cabelos em anéis a percorrer a cavalo as pradarias de Brockley, eis senão quando a rapariguinha, sentindo-se presa num silvado, rasgou o vestido de amazona tão desastradamente, que, ao reentrar em casa, decidiu tomar a escada secreta para que ninguém lhe pusesse a vista em cima. Ao passar, porém, a correr, diante da Sala das Tapeçarias, cuja porta precisamente estava aberta, julgou perceber a existência de alguém no interior. Vindo-lhe à ideia que seria a criada de quarto da mãe, a qual às vezes ia para ali costurar, entrou para pedir à mulher que lhe consertasse a saia.
E, com imensa surpresa sua, Virgínia viu o fantasma de Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela, a contemplar o ouro das árvores amarelentas, a ver as folhas rubras rodopiarem como loucas na grande alameda. A cabeça apoiada na mão, toda a sua atitude traía uma depressão extrema. Na verdade, ele apresentava um ar tão desolado e tão lamentável, que a pequena Virgínia, cujo primeiro movimento foi fugir e encerrar-se no quarto, tomada logo de piedade resolveu tentar reconfortá-lo. Os passos de Virgínia eram tão leves e a melancolia do fantasma tão profunda, que este não teve consciência.
- Sinto-me contristada por sua causa - disse Virgínia - os meus irmãos voltam amanhã para Eton e, se o senhor se portar bem, ninguém o atormentará.
- Pedirem-me que me porte bem! Mas é absurdo! - respondeu ele com os olhos escancarados de espanto à vista daquela gentil donzelinha que ousava dirigir-se-lhe. - É completamente absurdo! É imprescindível que eu faça ranger as minhas cadeias e ulule pelos buracos das fechaduras e passeie por aí de noite, se é a isto que a menina faz alusão. Essa é a minha única razão de existência.
Mas, à última hora, o terror que lhe causavam os gémeos impediu o fantasma de abandonar o seu quarto. E, na câmara real, o duquezinho dormia em paz no vasto leito de baldaquino ornado de plumas e sonhava com Virgínia.
- Isso não e uma razão de existência, e o senhor bem sabe que tem sido muito mau. Mrs. Umney disse-nos, no dia da nossa chegada aqui, que o senhor matou a sua mulher.
- Bem, concordo - disse com vivacidade o fantasma -; mas trata-se de um assunto de família com o qual os outros nada têm.
- É multo mal feito matar alguém - insistiu Virgínia, que, vezes, mostrava uma encantadora expressão de gravidade puritana, herdada de qualquer antepassado da Nova Inglaterra.
- Oh, detesto esse corriqueiro rigor da ética abstracta! Minha mulher era feia, não engomava nunca convenientemente a minha gola de folhos e não percebia nada de cozinha. Olhe, eu tinha matado um veado nos bosques de Hogley, um veadozinho magnífico. Quer saber como ela o fez aparecer à mesa? Mas que importa o caso, presentemente?! Tudo isso acabou. Não creio, porém, que fosse muito bonito da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de fome, embora eu a tenha matado.
- Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor fantasma... quero dizer, sir Simon... o senhor tem fome? Trago ali uma sanduíche no meu saco de costura. Quere-a?
- Não, obrigado, já não como nada, agora. Mas é, apesar de tudo, muita amabilidade da sua parte. A menina é muito mais gentil do que o resto da sua horrenda família, grosseira, vulgar, indigna!
- Cale-se! - bradou Virgínia batendo com o pé no chão. - Quem é grosseiro, horrendo e vulgar, é o senhor; e, quanto a indignidade, sabe perfeitamente que foi o senhor quem roubou as bisnagas da minha caixa de pintura para tentar avivar essa ridícula mancha de sangue na biblioteca. Primeiramente, deitou mão a todos os meus encarnados, sem esquecer o vermelhão, e tive de deixar de pintar o pôr do Sol; depois arrebatou o verde-esmeralda e o amarelo cromado; e, finalmente, só me restavam o anil e o branco da China, de modo que só podia pintar paisagens à luz do luar, que deprimem tanto quando as olhamos e que são tão pouco fáceis de executar. Eu nunca disse nada contra o senhor; contudo, andava muito aborrecida e tudo aquilo era bastante ridículo. Já se viu sangue de tom verde-esmeralda?
- Mas - disse o fantasma acalmando-se um pouco -, que hei-de eu fazer? Nestes nossas dias, é muito difícil encontrar sangue verdadeiro e, visto que foi o seu irmão a romper com o tira-nódoas, não vejo motivo para não lançar mão das bisnagas que lhe pertencem. Quanto à cor, é simples questão de gosto: os Cantervilles, por exemplo, têm sangue azul, o mais azulado de Inglaterra, mas sei que vós outros, os americanos, troçais a valer de tudo isto.
- O senhor nada sabe a esse respeito, e o melhor que tem a fazer é emigrar, para cultivar o espírito. Meu pai não deixará de sentir-se muitíssimo feliz em lhe conseguir uma passagem gratuita. O senhor não encontrará dificuldade alguma na alfândega, onde todos os funcionários são democratas. Uma vez em Nova-Iorque, alcançará o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que daria cem mil dólares para ter um antepassado, e ainda mais para ter um fantasma na família.
- Tenho a convicção de que não gostaria da América.
- Porque, suponho, não temos lá ruínas, nem curiosidades - disse Virgínia ironicamente.
- Nem ruínas! Nem curiosidades! - replicou o fantasma - Mas tendes a vossa marinha e essas vossas maneiras!
- Adeus! Vou pedir ao meu papá que conceda aos gémeos uma semana suplementar de férias.
- Não, não vá, miss Virgínia! - implorou o fantasma. - Estou tão só e tão desgraçado e não sei verdadeiramente o que fazer. Quero dormir e não posso.
- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Às vezes é difícil a gente manter-se acordada, na igreja sobretudo, mas é coisa bem fácil dormir. Até os bebés sabem isso; todavia, não são muito inteligentes.
- Há trezentos anos que não durmo, - disse ele com tristeza (os belos olhos azuis de Virgínia dilataram-se de espanto). - Há trezentos anos que não durmo, e estou tão cansado!
O rosto de Virgínia tornou-se grave e os labiozinhos puseram-se-lhe a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do espectro e, ajoelhando-se junto dele, ergueu os olhos para a velha face pergaminhanda.
- Pobre, pobre fantasma! - murmurou - Não há então sítio onde possa dormir?
- Além em baixo, para lá do pinhal - respondeu ele numa voz lenta e meditativa -, há um jardinzinho. A erva cresce ali, espessa e alta, salpicada das grandes estrelas brancas da cicuta, e o rouxinol canta lá toda a noite. Toda a noite ali canta o rouxinol, e a fria lua de cristal reclina-se para ver melhor, e o cipreste estende seus braços gigantescos sobre os dormentes.
Os olhos de Virgínia velaram-se de lágrimas e ela escondeu o rosto nas mãos.
- Quer aludir ao jardim da Morte - murmurou.
- Sim, da Morte! A morte deve ser tão bela! Repousar na terra doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de nós, e escutar o silêncio! Não ter ontem nem amanhã! Esquecer o tempo! Esquecer a vida, estar em paz! A menina pode ajudar-me. Pode abrir para mim as portas da casa da Morte, porque traz o Amor consigo e o Amor é mais forte do que a Morte.
Virgínia pôs-se a tremer, percorreu-a toda um frémito gelado e, durante momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de estar sonhando um terrível sonho.
O fantasma voltou então a falar, e a sua voz ressoava como um suspiro do vento.
- Já leu alguma vez a velha profecia inscrita nos vitrais da biblioteca?
- Oh, muitas vezes! - exclamou a donzelinha erguendo os olhos. - Conheço-a multo bem. Está pintada em curiosas letras a negro e é difícil de ler. São apenas seis versos:
Quando uma criança de coração puro conseguir
Colher dos lábios pecaminosos uma prece,
Quando a estéril amendoeira florescer,
Quando dos olhos puros brotar uma lágrima,
Esta casa ficará para todo o sempre tranquila
E a Graça voltará a Canterville.
«Mas não sei o que isto quer dizer.
- Quer dizer - respondeu ele tristemente - que a menina deve chorar comigo pelos meus pecados, porque eu já não tenho lágrimas, e rezar comigo pela minha alma, porque nada me resta de fé. Então, se tiver sido sempre meiga e boa, o Anjo da Morte terá piedade de mim. Há-de ver, na escuridão, vultos horríveis, vozes maldosas falar-lhe-ão ao ouvido, mas não sofrerá mal nenhum porque o Inferno nada pode contra a pureza de uma criança.
Virgínia não respondeu e o fantasma torceu as mãos com desespero, baixando o olhar sobre a cabeça coroada de cabelos de ouro reclinada perto dele. A jovem ergueu-se de súbito, muito pálida. Um estranho clarão lhe perpassou nos olhos.
- Não tenho medo - disse ela com firmez -. Rogarei ao Anjo que tenha piedade de vós.
O fantasma endireitou o busto ao mesmo tempo que soltava um débil grito de alegria, e, inclinando-se com uma gentileza já há muito fora de moda, pegou na mão da rapariguinha e beijou-lha. Os dedos de sir Simon tinham a frialdade do gelo e seus lábios queimavam como fogo, mas Virgínia não sentiu o menor desfalecimento enquanto ele a fazia atravessar o compartimento cheio de sombras. Bordadas nas tapeçarias, cujo tom verde fora desbotando, viam-se figurinhas de caçadores. Estes sopraram nas suas trompas ornadas de glandes e, com as minúsculas mãos, fizeram-lhe sinal para que arrepiasse caminho.
- Retrocede, Virgíninha - gritavam eles - vai-te embora!
Mas o fantasma estreitava-lhe a mão com mais força e Virgínia fechou os olhos para os não ver. Horrorosos animais de cauda semelhante à dos lagartos, olhos salientes de cabeça, pestanejaram-lhe repetidamente, de cima do fogão esculpido, e murmuraram:
- Toma cuidado, Virgininha, toma cuidado, olha que talvez nunca mais te tornemos a ver!
Mas o fantasma deslizou com mais celeridade e Virgínia não deu ouvidos àqueles. Ao atingirem a extremidade da sala, o fantasma parou e murmurou palavras que Virgínia não podia compreender. Ela abriu os olhos e viu a parede desaparecer lentamente como um nevoeiro, após o que se encontrou diante de uma grande caverna negra. Envolveu-os um vento áspero e frio e a jovem sentiu que a puxavam pela saia.
- Depressa! Depressa! - gritou o fantasma -. Senão será demasiadamente tarde.
Num instante o forro de madeira tornou a cerrar-se por detrás deles. A Sala das Tapeçarias ficara deserta.
Oscar Wilde, Textos, Poesias, Poemas e Frases:
A DONZELA E O FANTASMA
A DONZELA E O FANTASMA - CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VI
Daí a dez minutos, a sineta tocou para o chá e, como Virgínia não descesse, mrs. Otis mandou-a chamar por um dos criados. Passado um momento, este voltou para dizer que não tinha encontrado miss Virgínia em parte nenhuma. Como a jovem adquiria o costume de ir todas as tardes colher flores para o jantar, mrs. Otis não se inquietou; mas ao soarem as seis horas sem que a filha tivesse reaparecido, começou verdadeiramente a alarmar-se e mandou os rapazes à sua procura, ao mesmo tempo que ela própria e mr. Otis percorriam a casa, compartimento por compartimento.
Às seis e meia estavam de volta os rapazinhos sem terem podido achar o mais leve vestígio da irmã. Todos se encontravam agora na maior agitação e não sabiam que fazer, quando mr. Otis se lembrou de repente que, uns dias antes, concedera licença a um bando de ciganos para acamparem no parque. Imediatamente partiu para Blackfell Hollow, onde, sabia-o, os ciganos deviam agora estar. Acompanhavam-no seu filho mais velho e dois criados da granja. O duquezinho de Cheshire, louco de ansiedade, insistiu veementemente em se lhes juntar, mas mr. Otis opôs-se temendo que se travasse ali uma desordem. Ao chegar, porém, ao sítio em vista, descobriu que os ciganos haviam desaparecido. O lume, que ardia ainda, e alguns pratos dispersos pelo solo denunciavam claramente uma retirada repentina.
Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens que explorassem as circunvizinhanças, mr. Otis regressou a toda a pressa e expediu telegramas para todos os inspectores de polícia do Condado, pedindo-lhes que procurassem uma menina que fora raptada por vagabundos ou ciganos. Em seguida, mandou que lhe selassem o cavalo, intimou a esposa e os três rapazes a tomarem o seu jantar e, acompanhado de um lacaio, dirigiu-se para Ascot. Mas mal percorrera duas milhas ouviu atrás de si um galope. Voltando-se, descortinou o duquezinho, que vinha montado no seu poldro, o rosto muito afogueado e cabelos ao vento.
- Lamento muito - disse o rapazinho numa voz ofegante -, mas não poderei jantar enquanto Virgínia não for encontrada. Peço-lhe que não se zangue. Se o senhor tivesse consentido, o ano passado, no nosso ajuste de casamento, nada disto teria sucedido. Não vai mandar-me para trás, não é verdade? Eu não quero ir para casa! Não quero ir para casa!
O Ministro não pôde impedir-se de sorrir ao juvenil e encantador doidivanas e sentiu-se muito comovido com a devoção dele por Virgínia. Inclinando-se do alto do seu cavalo, deu uma palmada no ombro do rapaz e disse:
- Pois bem, Cecil, se você não quer ir para casa, tenho de levá-lo comigo, suponho. Comprar-lhe-ei um chapéu em Ascot.
- O chapéu que vá para o diabo! Da Virgínia é que eu preciso! - exclamou, a rir, o duquezinho.
Galoparam até à estação do caminho de ferro, onde mr. Otis perguntou se não tinha sido ali vista, na gare, qualquer pessoa correspondendo aos sinais de Virgínia; mas não pôde obter qualquer indicação. Contudo, o chefe da estação telegrafou para todas as outras estações da linha e prometeu fazer exercer por toda a parte uma severa vigilância. Depois de ter comprado um chapéu para o duquezinho a um comerciante de novidades, que ia precisamente naquele momento encerrar a sua loja, mrs. Otis dirigiu-se para Bexley, aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito, era local de encontro dos ciganos, por lá haver um prado comunal. Chegados a esse sítio, mr. Otis e o seu companheiro acordaram o guarda campestre mas não puderam extrair dele a menor informação e, após terem percorrido o prado inteiro, retomaram o caminho de casa e alcançaram o Parque Canterville pelas onze horas da noite, completamente esgotados e desesperados. Washington e os gémeos esperavam-nos ao pé do gradeamento com lanternas, porque a alameda estava muito escura.
Não se conseguira descobrir o mais leve rasto de Virgínia. Os ciganos tinham sido concentrados nas pradarias de Brockley, mas a jovem não se encontrava entre eles. Uma confusão de datas explicava a sua brusca partida: a feira de Chorton, que se realizava mais cedo do que pensavam, obrigara-os a abalar a toda a pressa. A verdade é que até eles haviam ficado consternados ao saberem do desaparecimento de Virgínia, porque guardavam grande reconhecimento a mr. Otis por este lhes ter permitido acamparem no seu parque, e quatro companheiros do bando ficaram para trás a fim de colaborarem nas pesquisas. O tanque das carpas fora esvaziado e todo o domínio batido de lés a lés, mas sem resultado. Era forçoso renderem-se à evidência: pelo menos naquela noite, Virgínia estava perdida para eles; e, profundamente abatidos, mr. Otis e os rapazes dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual conduzia à mão os dois cavalos e o poldro.
Encontraram no átrio um grupo de criados cheios de medo. A pobre mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca, semi-louca de inquietação e de pavor; a velha governanta banhava-lhe a fronte com água de Colónia. Mr. Otis insistiu imediatamente com ela para que tomasse qualquer alimento e mandou servir o jantar para todos.
Foi uma bem triste refeição, em que quase se não proferiu palavra. Os próprios gémeos estavam aterrados, amachucados, porque adoravam a irmã. No fim do jantar mr. Otis, não obstante os rogos do duquezinho, ordenou que todos se deitassem, dizendo que nenhuma outra coisa poderia ser feita nessa noite e que, no dia seguinte de manhã, telegrafaria à Scotland Yard, para lhe serem enviados imediatamente alguns agentes.
Precisamente no instante em que saíam da sala de jantar soava a meia-noite no relógio da torre e, quando retiniu a décima segunda pancada, ouviram todos um enorme estrondo, seguido de um grito penetrante. Um formidável trovão abalou a casa, os acordes de uma harmonia irreal flutuaram no espaço, no alto da escadaria abriu-se um dos panos das paredes e, no patamar, apareceu Virgínia, muito pálida, com um cofrezinho na mão.
Foi um instante enquanto todos se precipitaram para ela. Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o duque afogou-a com a violência dos seus beijos, e os gémeos executaram em volta do grupo uma dança guerreira.
- Santo Deus, donde vens tu?! - perguntou mr. Otis numa voz bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha pregado uma partida insensata -. Cecil e eu cavalgámos toda a região, à tua procura, e tua mãe esteve prestes a morrer de angústia. Aconselho-te a não voltares a entregar-te a farsas tão estúpidas como esta.
- Excepto contra o fantasma! Excepto contra o fantasma! - bradaram os gémeos entre mil piruetas.
- Minha querida, graças a Deus tenho-te aqui! É preciso que nunca mais me deixes - murmurou mrs. Otis, enlaçando a criança, a qual tremia e alisava os seus caracóis de ouro todos emaranhados.
- Papá - disse Virgínia num tom calmo - eu estava com o fantasma. Ele morreu. Devem ir vê-lo. Era muito mau, mas arrependeu-se verdadeiramente do que fez e, antes de morrer, deu-me este cofrezinho com maravilhosas jóias.
Toda a família a fitava, os olhos escancarados de surpresa, mas ela permanecia grave e séria; desviando-se, guiou-os através de uma abertura no forro de madeira das paredes até um estreito corredor secreto. Washington seguia-os empunhando uma vela que havia tirado de cima da mesa. Chegaram por fim a uma grande porta de carvalho ornada de pregos cheios de ferrugem. Quando Virgín
ia lhe tocou a porta girou nos gonzos, e encontraram-se todos numa salinha baixa, de tecto de abóbada e cujo único meio de renovação do ar era uma minúscula janela gradeada. Uma enorme argola de ferro estava chumbada à parede e, encadeado à argola, via-se um grande esqueleto estendido ao comprido no chão de pedra, parecendo tentar agarrar uma escudela velha e uma bilha colocada fora do seu alcance. A bilha devia ter contido outrora água, porque se mostrava por dentro coberta de bolor. Na escudela não existia senão urna camada de pó.
Virgínia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as delicadas mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto a horrível tragédia cujo segredo lhe era assim revelado.
- Olhem! - gritou de repente um dos gémeos, o qual se dependurara da janela para observar em que ala da edificação se situava aquele quarto. - Olhem! A velha amendoeira toda sequinha está em flor! Vêem-se muito bem as flores, à claridade do luar.
- Deus perdoou-lhe - proferiu gravemente Virgínia, erguendo-se; e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.
- És um anjo! - exclamou o duquezinho, que lhe lançou um braço à volta do pescoço, estreitando-a contra si.
Daí a dez minutos, a sineta tocou para o chá e, como Virgínia não descesse, mrs. Otis mandou-a chamar por um dos criados. Passado um momento, este voltou para dizer que não tinha encontrado miss Virgínia em parte nenhuma. Como a jovem adquiria o costume de ir todas as tardes colher flores para o jantar, mrs. Otis não se inquietou; mas ao soarem as seis horas sem que a filha tivesse reaparecido, começou verdadeiramente a alarmar-se e mandou os rapazes à sua procura, ao mesmo tempo que ela própria e mr. Otis percorriam a casa, compartimento por compartimento.
Às seis e meia estavam de volta os rapazinhos sem terem podido achar o mais leve vestígio da irmã. Todos se encontravam agora na maior agitação e não sabiam que fazer, quando mr. Otis se lembrou de repente que, uns dias antes, concedera licença a um bando de ciganos para acamparem no parque. Imediatamente partiu para Blackfell Hollow, onde, sabia-o, os ciganos deviam agora estar. Acompanhavam-no seu filho mais velho e dois criados da granja. O duquezinho de Cheshire, louco de ansiedade, insistiu veementemente em se lhes juntar, mas mr. Otis opôs-se temendo que se travasse ali uma desordem. Ao chegar, porém, ao sítio em vista, descobriu que os ciganos haviam desaparecido. O lume, que ardia ainda, e alguns pratos dispersos pelo solo denunciavam claramente uma retirada repentina.
Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens que explorassem as circunvizinhanças, mr. Otis regressou a toda a pressa e expediu telegramas para todos os inspectores de polícia do Condado, pedindo-lhes que procurassem uma menina que fora raptada por vagabundos ou ciganos. Em seguida, mandou que lhe selassem o cavalo, intimou a esposa e os três rapazes a tomarem o seu jantar e, acompanhado de um lacaio, dirigiu-se para Ascot. Mas mal percorrera duas milhas ouviu atrás de si um galope. Voltando-se, descortinou o duquezinho, que vinha montado no seu poldro, o rosto muito afogueado e cabelos ao vento.
- Lamento muito - disse o rapazinho numa voz ofegante -, mas não poderei jantar enquanto Virgínia não for encontrada. Peço-lhe que não se zangue. Se o senhor tivesse consentido, o ano passado, no nosso ajuste de casamento, nada disto teria sucedido. Não vai mandar-me para trás, não é verdade? Eu não quero ir para casa! Não quero ir para casa!
O Ministro não pôde impedir-se de sorrir ao juvenil e encantador doidivanas e sentiu-se muito comovido com a devoção dele por Virgínia. Inclinando-se do alto do seu cavalo, deu uma palmada no ombro do rapaz e disse:
- Pois bem, Cecil, se você não quer ir para casa, tenho de levá-lo comigo, suponho. Comprar-lhe-ei um chapéu em Ascot.
- O chapéu que vá para o diabo! Da Virgínia é que eu preciso! - exclamou, a rir, o duquezinho.
Galoparam até à estação do caminho de ferro, onde mr. Otis perguntou se não tinha sido ali vista, na gare, qualquer pessoa correspondendo aos sinais de Virgínia; mas não pôde obter qualquer indicação. Contudo, o chefe da estação telegrafou para todas as outras estações da linha e prometeu fazer exercer por toda a parte uma severa vigilância. Depois de ter comprado um chapéu para o duquezinho a um comerciante de novidades, que ia precisamente naquele momento encerrar a sua loja, mrs. Otis dirigiu-se para Bexley, aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito, era local de encontro dos ciganos, por lá haver um prado comunal. Chegados a esse sítio, mr. Otis e o seu companheiro acordaram o guarda campestre mas não puderam extrair dele a menor informação e, após terem percorrido o prado inteiro, retomaram o caminho de casa e alcançaram o Parque Canterville pelas onze horas da noite, completamente esgotados e desesperados. Washington e os gémeos esperavam-nos ao pé do gradeamento com lanternas, porque a alameda estava muito escura.
Não se conseguira descobrir o mais leve rasto de Virgínia. Os ciganos tinham sido concentrados nas pradarias de Brockley, mas a jovem não se encontrava entre eles. Uma confusão de datas explicava a sua brusca partida: a feira de Chorton, que se realizava mais cedo do que pensavam, obrigara-os a abalar a toda a pressa. A verdade é que até eles haviam ficado consternados ao saberem do desaparecimento de Virgínia, porque guardavam grande reconhecimento a mr. Otis por este lhes ter permitido acamparem no seu parque, e quatro companheiros do bando ficaram para trás a fim de colaborarem nas pesquisas. O tanque das carpas fora esvaziado e todo o domínio batido de lés a lés, mas sem resultado. Era forçoso renderem-se à evidência: pelo menos naquela noite, Virgínia estava perdida para eles; e, profundamente abatidos, mr. Otis e os rapazes dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual conduzia à mão os dois cavalos e o poldro.
Encontraram no átrio um grupo de criados cheios de medo. A pobre mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca, semi-louca de inquietação e de pavor; a velha governanta banhava-lhe a fronte com água de Colónia. Mr. Otis insistiu imediatamente com ela para que tomasse qualquer alimento e mandou servir o jantar para todos.
Foi uma bem triste refeição, em que quase se não proferiu palavra. Os próprios gémeos estavam aterrados, amachucados, porque adoravam a irmã. No fim do jantar mr. Otis, não obstante os rogos do duquezinho, ordenou que todos se deitassem, dizendo que nenhuma outra coisa poderia ser feita nessa noite e que, no dia seguinte de manhã, telegrafaria à Scotland Yard, para lhe serem enviados imediatamente alguns agentes.
Precisamente no instante em que saíam da sala de jantar soava a meia-noite no relógio da torre e, quando retiniu a décima segunda pancada, ouviram todos um enorme estrondo, seguido de um grito penetrante. Um formidável trovão abalou a casa, os acordes de uma harmonia irreal flutuaram no espaço, no alto da escadaria abriu-se um dos panos das paredes e, no patamar, apareceu Virgínia, muito pálida, com um cofrezinho na mão.
Foi um instante enquanto todos se precipitaram para ela. Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o duque afogou-a com a violência dos seus beijos, e os gémeos executaram em volta do grupo uma dança guerreira.
- Santo Deus, donde vens tu?! - perguntou mr. Otis numa voz bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha pregado uma partida insensata -. Cecil e eu cavalgámos toda a região, à tua procura, e tua mãe esteve prestes a morrer de angústia. Aconselho-te a não voltares a entregar-te a farsas tão estúpidas como esta.
- Excepto contra o fantasma! Excepto contra o fantasma! - bradaram os gémeos entre mil piruetas.
- Minha querida, graças a Deus tenho-te aqui! É preciso que nunca mais me deixes - murmurou mrs. Otis, enlaçando a criança, a qual tremia e alisava os seus caracóis de ouro todos emaranhados.
- Papá - disse Virgínia num tom calmo - eu estava com o fantasma. Ele morreu. Devem ir vê-lo. Era muito mau, mas arrependeu-se verdadeiramente do que fez e, antes de morrer, deu-me este cofrezinho com maravilhosas jóias.
Toda a família a fitava, os olhos escancarados de surpresa, mas ela permanecia grave e séria; desviando-se, guiou-os através de uma abertura no forro de madeira das paredes até um estreito corredor secreto. Washington seguia-os empunhando uma vela que havia tirado de cima da mesa. Chegaram por fim a uma grande porta de carvalho ornada de pregos cheios de ferrugem. Quando Virgín
ia lhe tocou a porta girou nos gonzos, e encontraram-se todos numa salinha baixa, de tecto de abóbada e cujo único meio de renovação do ar era uma minúscula janela gradeada. Uma enorme argola de ferro estava chumbada à parede e, encadeado à argola, via-se um grande esqueleto estendido ao comprido no chão de pedra, parecendo tentar agarrar uma escudela velha e uma bilha colocada fora do seu alcance. A bilha devia ter contido outrora água, porque se mostrava por dentro coberta de bolor. Na escudela não existia senão urna camada de pó.
Virgínia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as delicadas mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto a horrível tragédia cujo segredo lhe era assim revelado.
- Olhem! - gritou de repente um dos gémeos, o qual se dependurara da janela para observar em que ala da edificação se situava aquele quarto. - Olhem! A velha amendoeira toda sequinha está em flor! Vêem-se muito bem as flores, à claridade do luar.
- Deus perdoou-lhe - proferiu gravemente Virgínia, erguendo-se; e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.
- És um anjo! - exclamou o duquezinho, que lhe lançou um braço à volta do pescoço, estreitando-a contra si.
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A DONZELA E O FANTASMA
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